3º NEURÔNIO

Diálogo sobre possível assassino de Marielle prova que o abismo nos olhou

Operação Venire fez prisões na semana passada

Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL


A operação “Venire” expõe, como poucos episódios, a qualidade da, digamos assim, elite que nos governou ao longo de quatro anos. E, parece, nunca haveremos de atingir o auge do espanto poque a escória que chegou ao poder em 2019 não cessa de nos dar motivos novos. Não fosse pelas barbaridades que ainda estão aí e as por vir, há o passado impressionante. Como viram, a morte de Marielle Franco aparece num diálogo entre o coronel Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (especialmente para casos suspeitos) e um tal Ailton Barros, um militar reformado, hoje advogado, amigão do “Mito”.

O diálogo recuperado pela Polícia Federal flagra um papinho entre Barros e Cid. O primeiro diz ao buliçoso coronel estar cuidando da “missão”. Qual? Segundo a apuração, tratava-se de fraudar o registro de vacinação de Beatriz Ribeiro Cid, mulher de Mauro. O interlocutor de Cid encarece sua missão:
“Porque realmente o negócio é pica, e ninguém pode ficar exposto, não é?, particularmente, particularmente, quem você sabe, né? Não pode ficar. Mais tá caminhando bem”.

Já que se tratava de um arranjo para Cid, e dada a sua posição no governo, talvez fosse ele próprio a pessoa a não ser exposta. Não seria Barros a executar o serviço. Ele teria delegado a tarefa ao então vereador do Rio Marcello Siciliano (PHS). E explica os motivos:
“Ele é um político, né?, vereador aqui do Rio de Janeiro, sabe como resolve, né? Ele é a minha opção mais forte de resolver essa questão da, do, da, da nossa amiga, entendeu? E ele não resolveu, o irmão… Aí fodeu. Mas, eu acredito piamente que ele vai dar bingo para a gente.”

Cid se preocupa porque Siciliano aparecia à época como envolvido na morte de Marielle. Chegou a ser apontado como mandante do crime, mas a Polícia chegou à conclusão de que se tratava de uma plantação para afastá-la dos verdadeiros assassinos. Diante do óbice do coronel, Barros foi enfático:
“Eu sei dessa história da Marielle toda, irmão; sei quem mandou. Sei a porra toda. Entendeu? [Siciliano] Está de bucha nessa parada aí.”

Obviamente o braço direito de Bolsonaro não se interessou em saber, então, quem seria o verdadeiro assassino. Para lembrar: Barros também é amigão de Bolsonaro. Chegou a participar de uma live com ele em fevereiro de 2022, como informa reportagem da Folha. Candidatou-se a deputado estadual pelo PL do Rio, mas não se elegeu. Costumava comparecer a eventos patrocinados pelo então presidente.

Mas tudo ficaria por isso mesmo? Siciliano ajudaria Cid apenas por seus belos olhos? O outro deixa claro que não:

“Nessa época [em que foi citado no caso Marielle], a polícia pediu a suspensão do visto dele para ele não sair enquanto estava sendo investigado. Mas não tem nada. Não foi indiciado, não foi nada, e ele quer conversar com o cônsul justamente isso. [Dizer:] ‘Olha, fui injustiçado. Não existe nada contra mim, nenhum processo, não fui denunciado, não foi nada disso, eu não consto nada, foi uma injustiça que a imprensa fez comigo e eu preciso viajar.’ Então ele quer conversar e quer explicar essa situação”.

Cid não se faz de rogado e afirma:

“Deixa comigo. Vou tentar dar uma olha e resolver isso aí”.

A Embaixada dos EUA e o Consulado do Rio não responderam à Folha se o encontro aconteceu ou não. Cid e Barros estão presos. Siciliano foi um dos alvos do mandado de busca e apreensão.

Vivemos a experiência do abismo. Custa a crer que tenhamos sobrevivido. Notem, a propósito, qual é a “pegada” dos bolsonaristas na rede e por onde tenta escapar o próprio ex-presidente. As evidências de fraude no registro são gritantes, inclusive no de Bolsonaro. E já se sabe que o sistema foi acionado no Palácio no Planalto.

Bolsonaro, é claro, nega tudo ou diz não saber de nada. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Se vocês abrirem bem os olhos e os ouvidos, constatarão que o ex-presidente parece ainda mais preocupado em demonstrar que efetivamente não tomou a vacina do que em negar a fraude. Seus fanáticos podem tolerar crimes. A vacina? Nunca. Olhamos o abismo, e o abismo olhou pra nós.

Três dias antes dessa conversa, Barros esteve com Bolsonaro numa solenidade militar. Abismo.

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