crise do coronavírus

20 milhões de Gravataí iam ’sumir’ em Brasília; Vitória no kafkiano ’Processo Game of Thrones’

Venceu tese do secretário da Saúde e então procurador-geral Jean Torman, na foto na nova USF São Vicente

Uma disputa judicial que nos últimos dois anos bagunçou a rede municipal de saúde teve decisão favorável a Gravataí. Um TAC desastrado – e desastroso – assinado uma década antes pelo prefeito Sérgio Stasinski, além de dificultar a contratação de médicos (somente em julho deste ano as equipes foram completas) colocaria o município nos tubos com uma conta de R$ 22.222.926,73, que o Ministério Público do Trabalho determinava recolhimento para o FAT, fundo federal de amparo ao trabalhador, que financia, por exemplo, o seguro-desemprego.

Conforme a decisão da juíza trabalhista Márcia Carvalho Barrili, a pena foi reduzida par R$ 3 milhões, e com aplicação na saúde.

O TAC é kafkiano. Evoco mais uma vez Josef K., de O Processo, de Kafka, que, antes da execução, responde ao “culpado ou inocente?” com um “Inocente de quê?”. A Prefeitura não sabia do acerto, feito pelo ex-prefeito nos estertores de seu governo (cujas eleições seguintes que disputou mostram que seus 60 mil eleitores de 2004, houvesse o dispositivo, possivelmente clicariam em ‘desvotar’), se comprometendo com a não realização de contratações emergenciais para saúde.

Em 2019, quando revelei a polêmica, criou-se uma crise entre MPT, Justiça do Trabalho e a Prefeitura, que apesar de eu ter exercido a crítica jornalística, ficou sob suspeita de vazar informações para pressionar a justiça. Talvez por isso o novo despacho, mesmo positivo, não tenha sido divulgado pelo governo Marco Alba. O prefeito é hábil em evitar conflitos. Neste domingo localizei a sentença em busca sobre o caso. É de exato um mês atrás.

Para o leitor lembrar em detalhes o que apelidei de ‘Processo Game of Thrones’, quando juíza substituta citou a série em despacho, leia artigos como Citando Game of Thrones, juíza contesta tese da Prefeitura sobre falta de médicos em GravataíJustiça e MP emitem nota sobre falta de médicos em GravataíA real sobre a falta de médicos em Gravataí; em 15 dias, o caos, Só justiça evita perda de 45 médicos em GravataíCaos na saúde tem data: 1º de agosto; nas mãos da justiçaGravataí chama médicos, mas 4 em cada 10 desistem; 177 foram embora em 3 anosNão tem Jesus para crise dos médicos em Gravataí; nem arminha e outros textos relacionados.

Fato é que na decisão da juíza titular, em 19 de junho, o principal argumento do secretário da Saúde e, à época, procurador-geral, Jean Torman, foi aceito. Traduzindo do juridiquês: não há médicos no ‘mercado’ para o serviço público.

Nos últimos anos – e concursos realizado pela Prefeitura comprovam – as contratações emergenciais foram necessárias para garantir médicos, já que aprovados ou nem assumem, ou duram poucos dias atendendo, principalmente nas periferias de Gravataí.

Mas o mais favorável da decisão da juíza é a redução da ‘dívida’ e a aplicação da ‘pena’ na saúde municipal. O atual procurador-geral, Régis Fonseca, já prepara recurso para a Prefeitura não ter que pagar nada. Mas, se perder, o dinheiro poderá ser usado na saúde de Gravataí.

Trechos da sentença mostram que o processo está chegando a um termo infinitamente mais razoável que, para citar GOT, “a noite longa e cheia de horrores” do TAC aceito por SS, que, conforme a juíza, “foi assinado há mais de dez anos da execução, onde alterações significativas no cenário nacional – em especial, no campo da saúde, especificamente objeto da execução – ocorreram, inclusive com a implantação de programas governamentais, bem como pelo próprio mercado de trabalho que envolve a área”.

– Frente à efetiva valorização, que é louvável, acerca da profissão de médico, é, de certa forma, plausível a ‘queixa’ do Município no sentido de não ser possível o preenchimento de vagas de especialistas na condição de empregados/servidores públicos em razão da remuneração proposta, muito abaixo do mercado ou mesmo das possibilidades advindas do trabalho de forma autônoma. Cumpre destacar que o Poder Público tem limitações acerca das remunerações a serem alcançadas àqueles que fazem parte de sua administração – observa a juíza Márcia Carvalho Barrili, que alerta para “o momento crítico em que vive não só a sociedade brasileira como o planeta, em face da pandemia gerada pela COVID-19, capaz de gerar colapso no sistema de saúde brasileiro”.

– A execução que se processa, nos valores propostos, exacerba não só os próprios termos do TCAC (…) mas também o princípio da razoabilidade. Os importes fixados naquele não observam o grande número de profissionais, no caso, na saúde que o Município tem necessidade de contratar, independentemente da natureza do contrato. Ora, não há qualquer razoabilidade na busca do pagamento de mais de R$ 22.000.000,00 para um Fundo, deixando, com certeza, descoberto, o atendimento das necessidades básicas do Município, inclusive a saúde – decide.

Aqui, a juíza ilustra o que reputo kafkiano no processo:

– É um contrassenso a execução de mais de vinte e dois milhões de reais em razão de questões de contratação de pessoal da saúde municipal, cujos valores sequer serão revertidos a este campo social. Ou seja, se trata de ‘cobertor muito curto’, onde ao se chancelar a pretensão executória, estar-se-á criando um problema ainda maior na área da saúde, comprometendo, de forma grave, a continuidade da execução das políticas públicas as quais o Município tem obrigação, prejudicando a prestação de serviços essenciais à comunidade, inclusive em relação à saúde. Reitere-se que o percentual de 10% é exíguo frente ao número de profissionais, ainda mais considerando a rotatividade, afastamentos e férias. Algumas das condições estabelecidas dificilmente podem ser cumpridas, sequer se justificando sua pactuação pelo Município, já que seria evidente a possibilidade de atingi-las. Tal reforça o entendimento de que os valores que estão sendo executados não prosperam e exacerbam o razoável.

A juíza do trabalho conclui:

– Por conseguinte, diante de todo o exposto e, destacando-se, em especial, a consideração dos aspectos temporais e econômicos; a ponderação e a proporcionalidade por envolver direitos fundamentais; e o princípio da continuidade do serviço público citado pelo exequente, limita-se o valor das multas somadas em R$ 3.000.000,00 (…) A destinação do importe deverá ser a saúde, especificamente, na aquisição de equipamentos para Hospitais e/ou postos de saúde no Estado, a ser estabelecida pelo Ministério Público do Trabalho, o que se justifica – não só porque a saúde no Brasil é aquém da necessidade da sua população, mas igualmente em razão do momento grave pelo qual se passa.

Ao fim, é uma boa notícia para Gravataí. Em vez de mandar mais de R$ 22 milhões para um fundo em Brasília, a Prefeitura poderá investir R$ 3 milhões na rede de saúde municipal. Isso caso a decisão não se reverta para pior em tribunais superiores. O Processo, de Kafka, não é nada além de uma alegoria da Justiça, onde “a compreensão duma coisa e a má interpretação da mesma coisa não se excluem completamente”.

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