Cultivar lavouras sem derrubar ou diminuir a área de cobertura da vegetação nativa, e ainda enriquecer o solo para que mais espécies locais possam se desenvolver e, com isso, aumentar o território de natureza protegida.
Parece contraditório, sobretudo em tempos de aguçamento da polêmica entre a proteção ambiental e a produção agrícola, mas é o que se pretende colocar na prática — e já há amostras de sucesso — em uma das regiões mais sensíveis da bacia hidrográfica do Rio Gravataí. A criação de uma área de agrofloresta começa a nascer junto ao Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, em uma das principais regiões de nascentes do rio, tendo como protagonistas os vizinhos. São as famílias do Assentamento Filhos de Sepé, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em Viamão.
— A ideia toda surgiu da necessidade de integrarmos ainda mais o assentamento ao refúgio. Pretendemos criar zonas de produção que expandam a área de conservação natural ao mesmo tempo que gerem renda às famílias envolvidas — explica o responsável técnico da gestão de águas do assentamento, Mathin Zang.
A agrofloresta tende a se tornar realidade durante o próximo ano. A tendência é que o cultivo de frutas seja o escolhido, ao menos na fase inicial do projeto, e já há parcerias alinhavadas entre a cooperativa dos assentados , a cooperativa EcoCitrus, de Montenegro, e o programa EcoViamão para avaliar essas culturas. Há sugestões de cultivos piloto de uva, maracujá, laranja e bergamota, mas ainda não estão definidas. O projeto faz parte do programa Nexus, desenvolvido desde o começo deste ano pela Faculdade de Agronomia da UFRGS, em parceria com o Instituto Federal, de Viamão, dentro do assentamento.
— Tudo dependerá das espécies que melhor se adaptarem ao solo e às condições naturais desta área, sem prejudicar o ambiente natural — aponta Zang, que é agrônomo e faz parte da equipe do Nexus.
Vantagens ambientais
De acordo com o coordenador do programa, pela UFRGS, Paulo César do Nascimento, caberá aos técnicos envolvidos analisar o solo da Coxilha da Lombas — região do refúgio e do assentamento escolhida para desenvolver a agrofloresta — e elaborar técnicas de manejo para que o plantio seja bem sucedido.
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— É uma região de solo muito arenoso, mas em outras partes do assentamento já tivemos êxito com o manejo adequado, e a produção de muita matéria orgânica, para enriquecer este solo. A agrofloresta é um sistema complexo, que exige perfeita harmonia entre as características locais e as espécies frutíferas ou de hortaliças que venham a ser cultivadas — explica o especialista em solos da universidade.
E se a agrofloresta pode representar geração de renda com a produção agrícola, do ponto de vista ambiental, será a expansão da área verde do refúgio. Na prática, aumentará os corredores ecológicos para espécies como o cervo do pantanal e a oferta de alimentos em área protegida para as diversas espécies de aves que frequentam o refúgio.
Cultivo orgânico exemplar
O assentamento já é destaque internacional pelo cultivo agroecológico. Significa que, nos 6,5 mil hectares ao lado do refúgio, que tem 2,5 mil hectares, não há uso de agrotóxicos ou culturas transgênicas. A partir do Nexus, o cultivo de hortaliças, que envolve cerca de 80 famílias, ganhou um impulso na região.
— Houve uma pesquisa intensa na questão do solo para que a produção aumentasse, e tem dado muito certo. Hoje, o assentamento é responsável por boa parte das feiras ecológicas de toda a região metropolitana, além do fornecimento a mercados, escolas e outras instituições públicas — explica Marthin.
: Cultivo de hortaliças orgãnicas ganhou impulso com o trabalho do programa Nexus | DIVULGAÇÃO
O Nexus tem orçamento de R$ 430 mil oriundos de um edital do CNPQ, que inclui pesquisa, insumos e o custeio de três bolsistas para o desenvolvimento de cultivo alimentar na região metropolitana. O Filhos de Sepé é uma espécie de modelo para as demais áreas trabalhadas pelo programa. E o melhor exemplo da transformação que o MST tem conseguido na região está justamente na cultura do arroz — visto como vilão do meio ambiente na região do banhado.
Arroz orgânico de Viamão para o mundo
Pois no assentamento está a maior área de produção de arroz agrocológico da América Latina. Na última lavoura, foram 1.150 hectares plantados sem agrotóxicos e transgênicos na área de várzea vizinha ao refúgio, resultando na colheita de 4,6 mil toneladas de arroz orgânico, comercializados sob a marca Terra Livre, que inclui um total de 5,5 mil hectares plantados em todo o Estado, entre outros assentamentos.
Produzir desta forma era um compromisso de cada família beneficiada a partir da desapropriação daquela propriedade e a reguçarização do assentamento pelo Incra, há 20 anos. Cada assentado que chegava, garantia que só poderia produzir orgânicos, sem uso de agrotóxicos, em uma das áreas mais sensíveis da bacia do Gravataí.
Pois o arroz que sai hoje de Viamão alimenta, por exemplo, o Exército Brasileiro. Boa parte da produção é vendida nos mercados da região metropolitana e chega ao mercado paulista, além das exportações pela valorização do produto orgânico e de cultivo agroecológico. São 25 grupos de produção, envolvendo diretamente, pelo menos 50 famílias no cultivo do arroz. Indiretamente, chegam a mais de 100 famílias beneficiadas pela produção.
: Arroz produzido pelo MST, em Viamão, alimenta, por exemplo o Exército Brasileiro
Mas, como salienta Marthin, o momento é de melhorias.
— Estamos empenhados na otimização de todos os nossos espaços de produção. No caso do arroz, é urgente, e estamos trabalhando muito nisso, o uso mais racional da água, especialmente a preocupação com a qualidade da água que é devolvida ao rio a partir da lavoura. Não é possível que a água seja despejada diretamente do cultivo para o rio, e isso, os agricultores estão aprendendo em um processo de construção coletiva — aponta.
Cerca de 10% dos recursos do Nexus estão aplicados no desenvolvimento de melhorias no manejo da água desde o começo deste ano. Atualmente, a produção do assentamento já consegue reutilizar 70% da água que é captada do rio. Os demais 30% passam por processos de decantação e a ideia é que também passem por alguns outros processos antes de retornarem ao manancial. Além disso, em função dos lançamentos ao rio, a área de produção foi reduzida entre 2017 e 2018 em até 500 hectares.
O Nexus tem duração prevista até o final de 2020.
— A nossa expectativa é de que, ao final dos três anos do programa, tenhamos uma alteração significativa sobre o uso dos espaços de produção e a forma de manejo das culturas que existem no assentamento. Mas, mais do que isso, o objetivo é qualificar e conscientizar os produtores sobre a importância de consolidar a produção ambientalmente correta. Acho que estamos evoluindo — resume Paulo César do Nascimento.