Lá, do conforto do camarote ou das cadeiras do “futebol moderno”, o sujeito, com seu whisky liberado para VIPs, aponta o dedo para a cervejinha, tradicional parceira do futebol na arquibancada, junto ao alambrado. Acusa a loira gelada de ser a causa da violência nos estádios e outras mazelas relacionadas ao ambiente dos estádios. Pois eu aconselho: retire da programação, na sua próxima viagem aos Estados Unidos aquele jogo de beisebol com um copão de cerveja, seja coerente.
Chamar de retrocesso o possível retorno da cerveja às copas dos estádios de futebol gaúchos é preconceito e desinformação. É desconhecer que, fora do círculo dos grandes estádios, há muito futebol e convívio social no Rio Grande do Sul, tendo a cervejinha como parte dos encontros de domingo nos alambrados. O tema voltou aos debates a partir da noite de terça (18), quando o projeto de lei do deputado Gilmar Sossela (PDT), derrubando a “lei seca” nas arquibancadas, foi aprovado na Assembleia Legislativa. O projeto agora dependerá da sanção do governador para entrar em vigor e, quem sabe, já neste Gauchão, Divisão de Acesso e Segundona Gaúcha, a renda das copas possa ajudar os clubes do Interior a não abrirem seus estádios com prejuízo já calculado a cada rodada.
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O sujeito do camarote nem precisa se preocupar tanto, afinal, a própria Assembleia, na mesma noite, aprovou o “antídoto” para o copo de cerveja. Nos próximos dois anos, o ICMS sobre a bebida no Rio Grande do Sul seguirá elevado. Então, para ficar bêbado no estádio, só sendo daquela turma de cima.
Os defensores da lei criada há dez anos pelo então deputado estadual, e hoje prefeito de Cachoeirinha, Miki Breier (PSB), em sua maioria, pensando somente na Arena e no Beira-Rio — que é o que conhecem —, alegam que centenas de PMs já são deslocados para a segurança de cada jogo e, com a volta do álcool, mais ainda seriam necessários, supostamente, para conter os beberrões brigões. Alegam que o público dos estádios mudou na última década, com mais mulheres e famílias, supostamente, pela ausência da cerveja nos bares. Apontam como causa para a aprovação do projeto de lei um lobby da indústria cervejeira, é claro, só mirando do que acontece neste dois estádios.
Ora, quem frequenta futebol sabe que os brigões e bandidos não esperavam pela abertura dos bares internos dos estádios para cometer crimes. Eles continuam agindo, alguns bêbados, com ou sem a “lei seca”. A Brigada Militar alega que reduziram as ocorrências na última década, mas atribuir isso à mudança das copas é simplificar algo bem mais amplo, como a elitização que o famigerado “futebol moderno” provocou no futebol. Quem hoje tem dinheiro para ir a um desses dois estádios assiduamente? E quanto às mulheres nos estádios, quer dizer que mulher não bebe cerveja? Ou que elas precisavam da tutela de um homem sem cerveja para freqüentarem os estádios? Não. As mulheres estão, sim, muito mais presentes na arquibancada porque elas estão muito mais presentes e ativas em todos os setores da sociedade. É fruto da evolução social, e não dos copos vazios.
Grêmio e Internacional não perderam nada, ou quase nada, com a ausência da cerveja nos seus estádios nos últimos dez anos. É possível que os gestores dos seus estádios, que não são nenhum dos dois clubes, contem com uma renda a mais para cobrarem R$ 20 por um copo de cerveja, mas não fará a mínima diferença aos dois clubes bilionários. Eles têm muitas outras fontes de renda.
O que deveria ser motivo para mudar uma lei prejudicial ao futebol gaúcho, como foi a do prefeito do Miki, ocupa menos de uma linha de texto na justificativa de Gilmar Sossela — este, um frequentador de estádio da dupla Gre-Nal. Ele aponta: “a comercialização de bebidas seria mais uma maneira de aumentar a arrecadação, principalmente, das combalidas equipes do interior”.
Sim, o efeito da legislação foi devastador para boa parte dos clubes que, efetivamente, formam o futebol gaúcho. A copa garantia a maior parcela da renda do estádio e era, sim, um atrativo a mais para o público comparecer. Cerveja gelada, a preço acessível, com um futebol para assistir — ou para aguentar um futebol ruim —, era importante, sim. Se a justificativa para a proibição era a violência nos estádios, desafio a apontar fatos violentos nos estádios do futebol gaúcho — não nos dois estádios da dupla.
Até alguns anos atrás, o Cerâmica, em Gravataí, conviveu com as consequências danosas da “lei seca”. Enquanto o clube bancava segurança, PPCI para liberação do estádio, ambulância e outros custos, e, ainda, o preço alto dos ingressos do Gauchão, determinados pela federação, sem sequer a grana da copa com a venda da cerveja e com público, geralmente, pequeno. Desafio alguém lembrar jogos de Gauchão, Copinha, ou nas séries C e D nacionais, aqui no Rio Grande do Sul, que mobilizaram mais do que duas viaturas da Brigada Militar com ou sem cerveja no bar.
A poucos quilômetros do Vieirão, sempre rolou o futebol amador, com cerveja liberada, sem custos com PPCI e sem obrigatoriedade de policiamento. A diferença é que, no clube profissional, é preciso empregar atletas e profissionais do futebol, com todos os seus direitos trabalhistas. No amador, não há sequer este compromisso. Como concorrer com este cenário? Ora, a cervejinha, ao menos, empatava o custo de abertura dos estádios.
Em Santa Cruz do Sul há uma situação exemplar do que a “lei seca” provocou. Os dois clubes da cidade estampam nas camisas a OktoberFest como patrocínio. Legal. Mas não é mais possível provar do principal produto do festejo na copa do estádio. No caso dos Plátanos, casa do Santa Cruz, há uma distribuidora de bebidas em frente ao portão principal. O torcedor bebe e entra, por vezes, até no meio do jogo. Não seria mais racional que o valor pago pela cerveja beneficiasse ao clube?
Não é com proibição da cerveja que se coíbe atos violentos na arquibancada. Tampouco com a elitização do espetáculo, como se tem feito na primeira divisão brasileira. É com ações de fiscalização e, principalmente, de inteligência investigativa, como fez a Inglaterra. Ao invés de fingir que não existe proteção pelas direções de clubes a criminosos fantasiados de torcedores, que se puna favorecimentos e proíba a entrada nos eventos de quem tiver histórico de violência relacionada ao futebol. É isso que acontece no mundo inteiro.