Nenhum dos guris com quem o Paulo César Magalhães, o PC, hoje com 54 anos, conversa no gramado do Vieirão, durante os treinos da base do Cerâmica era nascido naquele dia. Madrugada de 11 de dezembro no Brasil, e um dia em que até o frio do inverno deu uma chance ao sol, em Tóquio, data que completou, nesta semana, 35 anos. Naquele dia, como o próprio PC define, o gremista acreditou no impossível.
— Quando eu conto para os meninos essa história, eles ficam admirados porque vivem em um mundo onde se tem acesso a todos os jogadores e campeonatos do mundo. Eles vêem que um cara que já esteve lá na TV está aqui diante deles, mas eu tento mostrar de onde vim e onde cheguei. Se eu cheguei, eles têm todas as condições, com a tecnologia que existe hoje, de chegarem também — diz o hoje diretor do Cerâmica.
Em 1983, aos 19 anos, o lateral-esquerdo PC Magalhães desbancou Casemiro para sair jogando no Mundial. Era o mais novo no grupo de jogadores campeões do mundo diante do Hamburgo, da Alemanha. Era um entre tantos crias da casa que formavam a base do time comandado por Valdir Espinosa.
: PC, na lateral-esquerda (saltando na foto), ganhou a vaga no time para marcar um gradalhão alemão
— Em torno de 60% do grupo era formado no Olímpico. Foi um time que começou a tomar forma mesmo uns dois anos antes, quando o Grêmio começou a acreditar que os meninos da base poderiam dar a resposta, e isso não era nada fácil naquele tempo em que o Internacional ganhava tudo. Geralmente, eram contratados os mais experientes e a gurizada não tinha chance. Mas no Mundial, eu diria que os experientes que é tiveram que se integrar ao nosso time mais jovem — lembra.
O guri do Olímpico
E quem disse que foi barbada para o guri de Santana do Livramento chegar ao topo do mundo com a camisa tricolor? Paulo César é o quarto de seis filhos do antigo goleiro do Força e Luz, Osmar Magalhães, e tinha no irmão mais velho um exemplo de quem se daria bem no futebol. Ele não. Aos 13 anos, já cursava e se formaria como torneiro mecânico no Senai, mas jogava a sua bola também.
Aos 9 anos, chegou no Grêmio e foi logo tratado de maneira diferenciada. Ele tinha talento. Aos 11 anos, já era morador do Estádio Olímpico, e não parou mais. A partir dos 14, vieram as convocações para a Seleção Brasileira. PC foi presença constante durante cinco anos nas categorias de base da Seleção.
Em 1981, com a chegada de Ênio Andrade, esse caminho já aberto lá fora, clareou dentro do clube. Ele pela esquerda e Paulo Roberto pela direita viraram apostas jovens do treinador. Ainda com idade de Infantil, mas atuando pelo até então Infanto-Juvenil (hoje Juvenil e Júnior), PC foi inscrito no Brasileirão de 1981 e não chegou a jogar, mas já treinava entre os profissionais e foi campeão brasileiro.
— Foi naquele ano que nós passamos a acreditar que era possível ganhar títulos internacionais, feitos realmente importantes, porque o Flamengo foi campeão mundial. Isso fez mudar o pensamento de todos aqui na província — brinca.
E aí, chegou Valdir Espinosa para fazer este sonho se tornar palpável. Depois do vice-campeonato brasileiro, justamente diante do Flamengo, em 1982, o foco gremista foi total na competição sul-americana. Desta vez, porém, PC Magalhães deu azar. Machucou-se e participou de poucos jogos da Libertadores. Ainda assim, carrega consigo a experiência deste título no caminho para o Mundial.
— Hoje, eu digo que a Libertadores é a Disneylândia. Naquele tempo, era batalha campal mesmo. Não tinha a TV para mostrar tudo o que acontecia. Chegar nessa competição já era bem difícil, teria que ficar entre os dois primeiros em um Brasileirão com 72 clubes. Depois, encarar tudo o que acontecia na América do Sul, não era para qualquer um — conta.
Os três mosqueteiros
PC apareceu no banco de reservas da final contra o Penharol e ganhou a chance de erguer a taça ao lado dos amigos Renato Portaluppi e Paulo Roberto. Dali, seriam poucos meses para a glória maior das carreiras dos três, que ficaram conhecidos como “os mosqueteiros do Grêmio”. Rendeu até matéria na Revista Placar.
— Nós três sempre estávamos juntos, mas era um grupo maior dos guris, com o China, o Osvaldo, o Caio e quando o Hugo De León chegou, gostava de andar com a gente também. Nós éramos guris mesmo, fazíamos coisas de guri, e o Renato era como termômetro das relações. Se os mais velhos estavam descontentes com alguma coisa dos guris, ele negociava. Se era o contrário, ele é que falava o que estava errado para nós no grupo — lembra.
Neste aspecto, PC Magalhães conta que aprendeu muito com Valdir Espinosa. O comandante sempre foi um grande administrador de grupos. Conseguiu equilibrar os extremos em um time no qual o jogador mais velho tinha apenas 34 anos, o Paulo César Caju, trazido da França para o Mundial.
— Era um time de operários mesmo. Tínhamos um jogador muito habilidoso, que era o Mário Sérgio, e o resto era de força e velocidade — define.
Pois as vindas do Mário e do PC Caju aconteceram depois da conquista da Libertadores. Eram os reforços para deixar o time que enfrentaria meia seleção da Alemanha mais cascudo. E, com eles integrados ao grupo, o Grêmio atravessou o mundo 11 dias antes do jogo.
Houve uma escala em Los Angeles e depois, o vôo até o Japão. Viagens internacionais não eram novidade para PC Magalhães, que já havia conquistado o Torneio de Toulon com a Seleção, mas desta vez, era diferente.
— Na Seleção, eu jogava entre guris. No Mundial, não. Seria o Hamburgo, que classificou na Europa e tinha metade da seleção no seu time. O clima era outro. Lá no Japão, até aquela descontração típica do nosso time teve que mudar um pouco, pelos costumes das pessoas no Japão, mas não tivemos problemas — garante o lateral do Mundial.
Para segurar o grandalhão
Mais do que participar do jogo mais importante da história do Grêmio, na preparação para a decisão, PC Magalhães soube que seria titular justamente por suas qualidades técnicas, mesmo com 19 anos.
É que o Hamburgo tinha um atacante pela direita com cerca de 1m90cm, bastante forte e que era usado em uma jogada específica, com a bola lançada pelo alto. Havia ainda outra jogada importante de bola alçada na área para a segunda trave. Espinosa sabia que a defesa gremista precisaria ser mais alta do que o usual. PC Magalhães, quarto zagueiro de origem e mais alto que Casemiro, foi a solução.
— Era muito difícil marcar o alemão, porque ele e todo o time deles tinha uma característica de muita força e sem tanta habilidade. Era assim como o nosso time, com um jogador habilidoso e pensador, e o restante de muita força. Por isso o placar foi tão apertado — define.
: Porto Alegre parou para receber os campeões: "o mundo era nosso", conta PC
Sim. De Porto Alegre, com radinhos e televisores a todo vapor em plena madrugada de 11 de dezembro, torcedores aflitos viram Renato abrir o placar aos 38 minutos de jogo. Tudo se encaminhava para a conquista, mas os alemães cresceram na segunda etapa e Schröeder empatou o jogo aos 41 do segundo tempo. Foi preciso jogar a prorrogação para saber quem seria o dono do mundo. E Renato, outra vez, marcou aos 3 minutos para decretar o 2 a 1 histórico.
E se, para os torcedores, aquela narração antológica de Armindo Antônio Ranzolin sobre o impossível que se realizava ficou marcada, a realidade não foi muito diferente para quem estava no time, em Tóquio. Na era pré-internet e pré-celular, eles só sabiam o que acontecia em Porto Alegre pelo que os profissionais da imprensa passavam.
— Acho que foi o período de convivência mais legal entre o pessoal da imprensa e o do futebol, porque era uma época em que nós dependíamos deles. Os repórteres que acompanhavam a delegação tinham uns rádios grandões, tipo de Exército, e por ali, nos contavam como estava a reação das pessoas. Um deles me contou que o Rio Grande do Sul e o Brasil estavam em polvorosa com a nossa conquista. Só por esse relato, eu já estava faceiro, mas quando cheguei, foi muito mais do que eu imaginava.
"O mundo era nosso"
Dois dias depois, o grupo de jogadores desembarcou na Capital. Não podiam sair pelo caminho já conhecido, tiveram que ser desviados para o setor de cargas, com direito a caminhão de bombeiros, e aí tiveram noção do tamanho do feito. A entrada da cidade estava interditada. A BR-116, por completo, também.
— Imagina para um guri de 19 anos o que foi aquilo. É aquela sensação de que o mundo era nosso mesmo — orgulha-se o PC Magalhães.
Hoje, 35 anos depois, os donos do mundo de 1983 mantêm contato diário. Quem diria, eles têm até um grupo de WhatsApp e, como qualquer família, rola bate-boca, discussão, boas risadas, notícias excelentes, como as mensagens que só os amigos são capazes de compartilhar na conquista da Libertadores do ano passado, com Renato no comando do time, e também, é claro, as más notícias, como a morte recente de Tarcísio, o Flecha Negra, ou, dois anos atrás, a morte de Mário Sérgio, no acidente que vitimou a delegação da Chapecoense.
Pois o homem que no dia 11 de dezembro de 1983 conquistou o mundo, alicerçou seu caminho, tem pelo menos três sobrinhos já no futebol e o filho segue o mesmo rumo, ainda vive de sonhos no mundo da bola.
— Vou ajudar a recolocar o Cerâmica no seu lugar!