3º Neurônio | comportamento

Direitos humanos para humanos sem direitos

O ser humano que não conhece os próprios direitos está fadado a se resignar com a tirania de quem trata garantias básicas como privilégios. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País

 

Para salvar uma senhora de 83 anos rendida como refém, dois policiais aproveitam a distração do assaltante e o executam com cinco tiros em plena luz do dia. A tentativa de roubo a uma joalheria de Valença, no sul fluminense, termina em morte. Testemunhas filmam a cena como se fosse um jogo de futebol e comemoram seu desfecho como um gol em final de campeonato. A quatro dias do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil escancarado em mais uma tragédia para a conta do Rio de Janeiro celebrava sem constrangimentos seu irremediável processo de desumanização.

Os aplausos diante do corpo estendido na rua poderiam ser interpretados como um desabafo perante a exaustiva sensação de insegurança, que agora se estende às pequenas cidades, ou um gesto de reconhecimento pela ação da polícia que mais mata e mais morre ao libertar a refém, não fossem gritos tal qual os de torcida num estádio que bradavam “atira nele”, “pega fogo”, “mata logo”. O que de fato se comemorava naquela manhã da última quarta-feira era a materialização do lema “bandido bom é bandido morto” ao alcance dos olhos. Um deleite coletivo pelo abate do assaltante.

 

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Tratados como heróis, policiais receberam cumprimentos de Jair Bolsonaro nas redes sociais, prontamente respondidos pela PMERJ, que prestou continência ao “Exmo. presidente eleito”. Em uma situação extrema, que representava risco à vida de uma mulher, os agentes agiram como manda o protocolo das forças de segurança. Entretanto, um incidente resolvido com o assassinato de um ser humano, independentemente do delito praticado, jamais deveria ser motivo de comemoração. A naturalidade com que passamos a encarar a morte na rotina de uma sociedade violenta insinua que a barbárie tem vida própria, está dissociada da nossa conduta e só pode ser combatida com mais sangue derramado. Esses sentimentos primitivos, da sede por justiceiros e linchamentos ao regozijo com a bala na cabeça do ladrão, são diariamente insuflados por políticos e discursos midiáticos irresponsáveis.

Bordões como “CPF cancelado”, utilizados por pregadores do caos na televisão em referência a suspeitos abatidos pela polícia, dão um toque de humor sádico à selvageria. A assimilação da violência como norma só foi possível graças à popularização de programas policialescos que, não bastasse o empenho em construir uma narrativa que resume o país à fama de recordista de homicídios, contribui para distorcer o significado dos direitos humanos, demonizando-os sob o malfadado estigma de “muleta para defensores de bandido”.

Vende-se a falsa ideia de presos gozam de regalias e criminosos são superprotegidos pela lei. Ignora-se, no entanto, que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que mais de um terço corresponde a presos que nem sequer foram julgados, submetidos – salvo raras exceções, onde o índice de reincidência após cumprimento da pena costuma ser bem menor que a média nacional – a condições de tratamento desumanas. Ao contrário da lenda que virou verdade nos grupos histéricos do Whatsapp, ninguém comete um crime para viver de “bolsa cadeia”. Menos de 8% dos detentos brasileiros têm direito ao auxílio-reclusão, um benefício do INSS destinado apenas aos dependentes do preso de baixa renda (salário inferior a 1.300 reais) com histórico de contribuição à Previdência Social.

 

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auxílio-reclusão, por sinal, ilustra bem para que serve um direito humano. Se todas as famílias de contribuintes devem ser contempladas com o benefício em caso de morte, doença, afastamento ou invalidez, as dos encarcerados também precisam se enquadrar na mesma regra, pois não é justo que elas paguem por eventuais crimes cometidos pelos provedores de seu sustento. Princípios básicos dos direitos humanos se estabelecem pelo caráter da universalidade: só fazem sentido se compreenderem todos os indivíduos. Justamente para evitar que sejam convertidos em privilégios de poucos. A partir do momento em que negamos um direito fundamental a qualquer pessoa, ele deixa de valer para todo o resto.

Como cobrar punição rigorosa para bandidos sem farda se os maus policiais já contam com licença para matar e, caso o futuro governo cumpra a promessa de ampliar os excludentes de ilicitude, abusarão ainda mais da impunidade institucional para transformar a premissa de proteger o cidadão em aparato de genocídio? Qual o sentido de dizer que os direitos humanos atrapalham o trabalho da polícia ao passo que um de seus propósitos é evitar que agentes de corporações militares arrisquem a vida em guerras sem sentido? Por que acreditar que a redução da maioridade penal pode diminuir a violência sem antes levar em consideração que, numa mesma cidade, convivem jovens que saem da sala de aula preparados para o vestibular e outros, da mesma idade, que se escondem de tiroteios debaixo das carteiras? O que se esconde por trás de tantos apelos em prol da revogação do Estatuto do Desarmamento em um dos países mais perigosos para ativistas e militantes, capaz de promover um notório estimulador do ódio a movimentos sociais a ministro do Meio Ambiente no mesmo fim de semana do assassinato de dois trabalhadores sem terra? A perspectiva das campanhas difamatórias contra os direitos humanos despreza a realidade, dados e inúmeros estudos que refutam a tese de que a maioria da população desfruta de direitos demais.

 

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Não por acaso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos sublinha que “toda pessoa tem direito à educação”. Seus mandamentos deveriam ser disciplina obrigatória nas escolas. O ser humano que não conhece os próprios direitos está fadado a se resignar à tirania de quem trata garantias básicas como privilégios, banaliza a matança e sentencia que as minorias se curvem à maioria. O termo “minorias”, para que fique claro, não está relacionado ao tamanho de um grupo, mas sim a seu grau de vulnerabilidade: pobres, negros, mulheres, índios, LGBTs. Os direitos humanos têm de estar ao alcance de todos, mas, principalmente, dos humanos sem direitos.

 

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