O Ministério Público já sabe quanto a empresa Blue Eyes Assessoria e Gestão em Saúde, criada em Gravataí pelo ex-secretário da saúde de Canoas, Marcelo Bósio, e pela ex-secretária da saúde de Gravataí, Joice Dorneles, no começo de 2017, embolsou em um contrato de consultoria firmado pelo Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp). Foram pagos R$ 524,6 mil e, destes, R$ 445,9 mil provenientes de verbas diretamente repassados pela prefeitura de Canoas e seu fundo de saúde — verbas do SUS — para serviços de consultoria.
De acordo com o promotor João Afonso da Silva Beltrame, não é possível detectar sequer se algum serviço foi prestado pela Blue Eyes para os gestores de dois hospitais, duas UPAs e quatro Caps de Canoas.
— O uso de consultorias é uma prática do grupo e considerada ideal para simular pagamentos como forma de lavagem de dinheiro. Consultorias desta forma não são capazes de ser quantificadas — aponta o responsável pela investigação no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MP.
Bósio foi preso em São Paulo durante os cumprimentos de mandados da operação desencadeada na manhã de quinta. Nos meses finais de 2016, quando era secretário no governo Jairo Jorge (PDT), em Canoas, ele assinou o contrato que prevê até R$ 1,2 bilhão em pagamentos ao Gamp para gerenciar a maior parte da saúde municipal daquele município. A gravataiense Joice Dorneles era chefe de gabinete. Ambos, com o fim do governo Jairo Jorge, saíram da prefeitura e, em fevereiro do ano seguinte, eram sócios na empresa Blue Eyes, oficialmente sediada no bairro Salgado Filho, em Gravataí. Mas antes mesmo da criação da empresa, segundo o MP, já havia indícios de irregularidades.
— A saída da prefeitura e a contratação para um serviço de consultoria pelo Gamp foi quase imediata. A Blue Eyes foi contratada no dia 1º de fevereiro, mas nesta data, a empresa sequer existia — aponta o promotor.
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A constituição formal só ocorreu no dia 21 de fevereiro de 2017. E as relações com o grupo gestor da saúde de Canoas não param no contrato entre as duas empresas. Este, aliás, como confirma o MP, foi o único serviço contratado desde a criação da Blue Eyes. Apenas um mês depois de ser contratada, como sócia da Blue Eyes, para uma consultoria ao Gamp, Joice Dorneles passou a figurar, no dia 10 de março do ano passado, formalmente no conselho gestor do grupo, com suas atividades principais em São Paulo. Nos últimos dois dias, a reportagem tenta contato com a ex-secretária por telefone e via Whatsapp, sem sucesso.
Bósio, por sua vez, não aparece em qualquer documentação do Gamp. A investigação revelou, no entanto, que ele se dedicava exclusivamente à função de controller nacional da organização. Com papel fundamental na gestão do grupo.
Conforme Beltrame, diversas outras empresas criadas com o único intuito de maquiar os desvios de verbas públicas pelo Gamp estão no alvo da apuração, como está a Blue Eyes. Há, inclusive, pessoas próximas à ex-secretária entre os investigados por terem emprestado seus nomes como “laranjas” no esquema.
Três pessoas foram presas na quinta. Nesta sexta, Diego Bastos, o superintendente regional do Gamp, que era o quarto suspeito com prisão preventiva decretada, se apresentou ao Ministério Público em Canoas. Assim como Joice e Bósio, ele mantinha uma empresa subcontratada pelo Gamp, também sob suspeita de receber valores sem prestar serviços.
Também nesta sexta, a Justiça deferiu os pedidos de liminares na ação civil pública movida pelo MP determinando o imediato afastamento de todos os dirigentes do Gamp da gestão das unidades de saúde de Canoas. A Justiça também determinou que o município reassuma as gestões imediatamente, pelo prazo de 180 dias, com envio mensal de relatórios. Foram proibidas novas contratações entre Gamp e o município de Canoas.
Além do Rio Grande do Sul, o grupo é investigado por suspeitas de desvio de valores na gestão da saúde em municípios de pelo menos outros dois estados — São Paulo e Pará.
Dono do Gamp é líder do PV em São Paulo
O principal alvo da investigação era o clínico geral Cássio Couto, preso em um hotel de luxo de Porto Alegre na manhã de quinta. Ele é o dono do grupo Gamp e, segundo o MP, utilizava-se de parentes para nomear como diretores em seu lugar. A partir do histórico político e das relações partidárias deles, a investigação aqui na região metropolitana ainda tomará outros rumos.
Líder do Partido Verde (PV) em Cotia, São Paulo, onde fica a sede administrativa do Gamp, em 2012, quando foi eleito vereador por lá, Cássio divulgava com orgulho a criação deste projeto em 2006, e, na página do partido naquele município, explicava a motivação da criação do Gamp: “com o objetivo de informar à população sobre saúde e prevenção de doenças, com mais de 24 mil atendimentos gratuitos realizados”.
De acordo com o promotor Beltrame, até o momento a investigação não detectou repasses de valores do grupo para campanhas nesta última eleição, mas ele confirma que as relações políticas e partidárias na região estão sob apuração. Joice Dorneles, por exemplo, é esposa de Márcio Souza, também ex-secretário municipal em Gravataí e presidente estadual do PV há cinco anos. A investigação já detectou diversas indicações políticas para ocuparem cargos no grupo atuante em Canoas.