O demônio chegou ventando
Eu estava lendo em frente a minha loja de bugigangas
Pediu uma cadeira
Ele fedia como qualquer fera carniceira
Subiu suas mangas
Deixando as suásticas e os insetos à mostra
“eu faço alta arte” – ele disse – “eu estudei em conservatório”
“eu sou amigo do KLEDIR” “Eu sou o pão e o vinho do porvir”
“tu é comunista?” “que música tu faz?” “ah!pobre de ti”
“a justiça é uma doença” “como pode um semi-letrado como tu ser artista?” “tu é poeta? Ler Rimbaud na calçada não te faz poeta”
Meu amor é uma estrela imensa
meu amor é uma chaga aberta
no corpo de um infeliz morto por tentar ser feliz
meu amor é um corte que faço entre o cordão umbilical
apodrecido dessa gente que rejeita o afago do figo
entre as oliveiras, toda essa gente com dedo e boca de juiz
oh, cadente criatura espiritual, mesmo sendo o demônio
estás tão carente?
E só agora que digo que não me interesso por tuas obras
Que se ofende?
Dizes que és amigo da minha esposa
Que compra da minha casa
Agradeço tua moeda com um cuspe
Faço banquetes com sobras
Eu ouço – talvez eu mereça ouvir – mas de ti, não mereço
Ouvir o sibilo de tua língua bífida – pra mim não és nada ilustre –
Nem mais pros teus filhos
Não temem mais pesar os joelhos sobre o milho
Nem esse teu francês de motel
Nem teu desprezo/inveja do céu
Nem tua chama de miss fui alguém
Teu fogo é centelha, não é fogaréu
Mas, mesmo assim, fico triste
Pois tu ainda existe
Pois tu és o cristianismo no mais alto grau
Tu não és a tradução da chuva como cristal
És comum e abismal.