— Mas será que nós vamos ter que voltar a enfrentar fila para ter atendimento?
A frase era de um morador do bairro Águas Claras, em Gravataí, ao chegar à Unidade de Saúde da Família do bairro na manhã desta segunda e ser informado de que a marcação de consultas estava suspensa. Motivo: o fim do convênio do governo cubano com o programa Mais Médicos.
Dos quatro médicos desta unidade, três são cubanas. O quarto é um brasileiro formado no Exterior que revalidou seu diploma no país. Diariamente, a equipe garante pelo menos 200 atendimentos à população do bairro. Logo, sem as cubanas, que estão se despedindo nos próximos dias, todo o atendimento do posto vai parar se não houver uma solução do município. Por enquanto, a coordenação da unidade mantém os atendimentos já marcados e a demanda que elas conseguirem dar conta. Casos de urgência estão sendo direcionados ao Pronto-Atendimento 24 Horas — o que provavelmente criará um novo problema à saúde municipal.
— A perda é imensa. Nossa unidade de saúde da família foi criada há quatro anos, sempre tendo como base o Mais Médicos e, principalmente, os médicos cubanos em missão no Brasil. As três atuais médicas já fazem parte da segunda turma que recebemos. Já passaram mais de 10 intercambistas cubanos aqui, e a aprovação é muito grande na comunidade — garante a coordenadora do posto, Genandra Raquel da Silva.
Uma das cubanas já não está atendendo. É que ela entraria de férias nesta semana, tinha passagem já marcada para sua terra natal e voltará. Não retornará. Era a mais experiente da atual turma no bairro Águas Claras. Antes de vir para Gravataí, onde atua há mais de um ano, ela havia cumprido missão, que é como Cuba classifica a sua ação no Brasil e em outros países, na Venezuela. O tempo de permanência máximo no país é de três anos.
LEIA TAMBÉM
Saída de médicos cubanos preocupa a prefeitura
OPINIÃO | Saída de médicos cubanos é desastre para Gravataí
Frente de médicos reage à saída de médicos cubanos
As outras duas médicas seguem atendendo, mas ninguém sabe até quando. Elas aguardam apenas a marcação das passagens para Havana. Nenhuma delas quis conversar com a reportagem.
E o problema é ainda maior na unidade vizinha, que atende às famílias da Morada do Vale II. Lá, são duas médicas para atender à comunidade. Ambas cubanas, e uma delas, à exemplo da colega do Águas Claras, já saiu em férias e não retornará.
— Há o problema dos atendimentos agendados na unidade, mas teremos um prejuízo também muito grande nos atendimentos nas casas feitos pela medicina de família. São pelo menos 20 atendimentos a pessoas acamadas e famílias sem condições de deslocamento até o posto semanalmente — aponta Genandra.
As cinco médicas dos dois postos da Rua Carlos Drummond, onde há a maior concentração dos 17 cubanos atuantes em Gravataí, moram na cidade — duas delas no bairro onde trabalham —, mas nenhuma trouxe a família para o Brasil. Houve convite para que revalidem o diploma e fiquem no país. Nenhuma aceitou.
— A formação delas é diferente daqui. Os cubanos têm muito presente a importância da missão que receberam, e ninguém está aqui obrigado ou contra a vontade — comenta a coordenadora.
: As duas médicas na USF Morada do Vale II são cubanas, ninguém sabe como ficará | GUILHERME KLAMT
Um exemplo aconteceu no próprio posto do bairro Águas Claras. No começo deste ano, uma das médicas foi embora, voltou para Cuba porque deixou um filho pequeno lá e a família precisava dela. Foi prontamente substituída por uma das preferidas da comunidade: a doutora Maydaniz.
— Ela é muito querida, porque nos escuta e entende os nossos problemas. Antes, os brasileiros não davam atenção. Eu chegava aqui e me receitavam um paracetamol. A doutora me examinou melhor, receitou anti-inflamatório e os problemas que eu tinha no punho e em um dos joelhos diminuíram muito. Com as cubanas nós nos sentimos muito melhor, vai ser uma pena a saída delas — conta a aposentada Terezinha Pereira Alves, 74 anos.
Quem também mostrou preocupação com a perda dos cubanos do Mais Médicos é o aposentado José Laumir da Silva. Na manhã de segunda, ele acompanhou a esposa, que faz tratamento contra depressão, na unidade de saúde da família da Morada do Vale II. Estava ali mais do que como um acompanhante.
— Eu estou preocupado, porque a gente ficou chocado quando viu que eles vão embora. Eu devo muito às médicas cubanas pela atenção que dispensam a nós. Eu tenho problema cardíaco e uma das médicas descobriu que tinham me receitado uma dosagem errada de remédio que poderia me desenvolver gota. A forma como elas atendem é diferenciada — elogia.
Conforme a coordenadora da unidade Águas Claras, a diferença em relação á formação médica brasileira está nas "tecnologias duras". O aprendizado e o exercício da medicina em Cuba é mais holístico e preventivo, e sem tamanha dependência de exames que exijam maior tecnologia.
Aos poucos, porém, os médicos cubanos adaptam-se ao sistema brasileiro, também com encaminhamentos a exames e outros procedimentos. Um dia por semana de cada médico cubano é dedicado a estudos. Tanto de casos e do sistema médico brasileiro, quanto da língua.
Governo federal promete edital
Enquanto as unidades de saúde — e as comunidades — atendidas pelos cubanos aguardam uma solução para a despedida deles, a secretaria municipal da saúde reuniu-se na manhã desta segunda tentando traçar um plano alternativo.
No final de semana, o secretário Jean Torman disse ao Seguinte: que aguarda uma medida compensatória do governo federal, seja com recursos humanos ou no aumento de verbas para os municípios.
— O trabalho dos médicos cubanos se mostrou de grande valia, com excelentes resultados e uma especial aceitação das comunidades. O serviço disponível à população tornou-se essencial — define.
É aguardada a abertura de um edital, ainda este mês, pelo ministério da saúde, abrindo vagas para médicos brasileiros. Vale lembrar que o Mais Médicos já prioriza os médicos nacionais, mas sobram vagas.