candidatos locais

BIOGRAFIA: Vicente Pires, o sobrevivente das drogas venceu

Luis Vicente Cunha Pires

Seguimos com Vicente Pires uma série especial com candidatos locais que disputam a assembleia legislativa e a câmara federal nas eleições de 2018. Num formato diferente, o Seguinte: ouve as histórias de vida e traz relatos em primeira pessoa, onde são os entrevistados que contam suas trajetórias. 

 

Assista ao clipe que o Seguinte: produziu na casa do Vicente, na Clovis Pestana, em Cachoeirinha. Depois leia a biografia

 

Nasci em 26 de setembro de 62, em Porto Alegre, mas moro desde sempre em Cachoeirinha, no mesmo lugar, na Clovis Pestana. A mãe, Celi, professora, foi a primeira diretora do Carlos Wilkens. O pai, Adão, garçom, enfrentou uma longa batalha contra o câncer e faleceu quando eu tinha 11 anos. Tenho um irmão, Frank, 46. Sou casado há 32 anos com a professora Sueli, por anos diretora do Mascarenhas de Moraes, que conheci na grande greve de 86, no acampamento em frente ao Palácio Piratini. Ela grevista, eu militante da união municipal dos estudantes secundaristas. Nossos filhos são Gabriel Natan, 31, Thomás Leonel, 30, Thayme Luísa, 25 e Nasmine Mariah, 22. Meu hobby é criar pássaros, atividade para a qual sou licenciado, cuidar da horta e curtir a praia em Imbé.

Estudei no Wilkens, no Poli e no Gensa, até concluir a contabilidade no Mascarenhas. Cursei contabilidade na Unisinos e Direito na Uniritter. Há quatro anos me formei em Gestão Pública. Gostava de brincar com a gurizada na beira do rio e correr por entre as tropas de bois xucros que cruzavam pelo campo onde hoje é o Polivalente. Mas tive uma infância muito judiada com o sofrimento do pai, que na época foi tratado com as primeiras quimioterapias na Santa Casa e foi cobaia de testes até em São Paulo. Uma recordação gravada em minha memória sou eu, ele e meu irmão ainda engatinhando, sentados embaixo da parreira do pátio. Desde menino minha vida se misturou muito com o trabalho. Tirava um dinheirinho fazendo bico para uma distribuidora, colocando anéis que valorizavam uns chicletes azuizinhos, que eram vendidos na época. Também trabalhei descarregando caminhões de tijolos e em duas empresas de construção civil.

Minha carteira foi assinada pela primeira vez aos 14 anos, no escritório do contabilista Osvaldo Correa, que era vereador. Como era colega da política, o diretório do PDT ficava ali do lado e nossa família gostava muito do Brizola (em homenagem, o segundo nome de um de meus filhos é Leonel), me filiei em 86 no partido que tinha como personagens Francisco Rodrigues, Ivo Pacheco e Valdecir Mucillo. Aos 16 anos, era da Juventude Socialista. Não esqueço a campanha que fizemos para o Carlos Araújo e as histórias que contava junto da Dilma Rousseff, lá na casa deles na zona sul da capital.

Em 88, concorri a vereador. Faltaram apenas 26 votos! Mas antes de narrar minha trajetória política, é preciso contar alguns episódios para que o leitor possa entender a minha história. Neste período, as drogas já faziam parte da minha vida. Desde os 16 fumava maconha, por rebeldia e para fazer parte da turma. Os prejuízos nunca são imediatos, mas hoje sei que estudos adiados e cursos universitários inconclusos têm muita influência do consumo. Ficou pior aos 23, quando conheci a cocaína. Lembro de ter ido comprar o fumo e caí no conto do traficante. Como a droga estava chegando ao Rio Grande do Sul, para popularizá-la, represaram a venda da maconha.

– Tem só o pozinho branco!

Meu uso foi compulsivo. À época já tinha meu escritório de contabilidade, bem montado, com oito clientes. Só parei de usar no primeiro ano de casado, mas bebia muito uísque. Cresci o consumo gradualmente até cheirar 10 gramas por dia. Bebia duas garrafas de vodca. A Sueli ia para a escola e, por vezes, eu nem aparecia no escritório. Ficava o dia inteiro em casa, no escuro do quarto fechado, usando drogas. Achava que estava tudo sob controle, que não era dependente, que fazia porque queria. A coca mascarava os sintomas da bebedeira e me considerava funcional. O inevitável aconteceu. Comecei a tirar dinheiro, coisas do escritório, lesar clientes, até quebrar. Fui processado, condenado e preso. Logo volto a essa história.

Com 10 anos de uso avassalador, eu, que apesar de todas as dificuldades financeiras desde criança a mãe vestia bem, agora era um adulto desleixado, de camiseta, calça suja e chinelo de dedos. Desempregado, meu vício, mesmo que inconscientemente, tinha muita relação com o suicídio. Era um processo que invariavelmente levaria à morte. Eu me desafiava. Tinha um Escort que dirigia a 100 por hora pela freeway, enquanto colocava em cima da perna um pequeno espelho que guardava no porta-luvas, esticava as carreiras e aspirava. Perdi muitos amigos, que morreram cedo ou se suicidaram.

Em 96 uma prima me procurou e, como eu conhecia o padre Ermelindo Lottermann, pediu para organizar um encontro de casais na igreja São Vicente. De sexta a domingo participei das reuniões, mas saía a toda hora para o banheiro, onde cheirava pó e bebia uísque de uma garrafinha que escondia no bolso. Quando acabava a droga, ia até uma boca que existia ali perto da ponte e buscava mais. Um participante, Paulo Finger, que é idealizador do Grupo Reviver, logo identificou que eu estava louco. Em uma semana veio me visitar e me convenceu a procurar a ajuda.

Por quatro dias fiquei internado no Hospital Espírita. Convivia em meio a psicóticos e corredores em todo momento mijados e defecados por pacientes em surto. Viciado, levei droga escondida para o caso de não agüentar. Usei tudo. Num dia de visita, a qual só teria direito após uma semana, vi que a Sueli estava lá por engano e falava com um enfermeiro. Corri, me atirei pela porta, agarrei as pernas dela e pedi para ir embora. Convencemos a médica a me liberar. Procurei a Recreo, retiro comunitário de reabilitação ocupacional, em Montenegro. Por 15 dias, entre as entrevistas e a internação, não parei de cheirar. No dia em que ela me levou à localidade, que fica no interior e tem o sugestivo nome de ‘Muda Boi’, fui sentado no banco da carona usando drogas. Pouco antes do acesso, pedi para estacionar em um bar à beira da estrada.

– Me dá um liso – pedi.

Tomei quatro copos grandes de vodca antes de me despedir e tomar o rumo da fazenda. No domingo, quando acordei, a geada cobria o campo e a água estava congelada nos canos. Pensei: “onde fui me meter…”. À época não se usavam medicamentos ansiolíticos, como hoje, então para suportar o tratamento eu dividia mentalmente os nove meses em trimestres, os trimestres em semanas, as semanas em dias, os dias em horas. Lá você, além de você trabalhar na horta e na lida com os animais, ganha autoconfiança através da espiritualidade e do estudo dos 12 passos dos alcoólicos anônimos.

Desintoxicado, voltei para casa uma pessoa mais afetiva, mais sensível. Tirei um escudo de proteção. Segui um tratamento psiquiátrico que revelou problemas que tinha, desde a infância e adolescência, com a morte do pai e coisas mal resolvidas com a mãe, mesmo com todo amor que recebi dela, uma professora municipal que batalhou para me pagar escola particular, no Gensa! Moramos juntos até hoje, no mesmo terreno. Ela foi a primeira pessoa a me receber e trocamos um abraço de uma forma que nunca antes eu tinha conseguido expressar.

Muitas pessoas que não me conhecem acham que sou uma pessoa fechada. Mas sou um tímido. Só com as drogas era extrovertido. Lembro de uma história: na minha primeira campanha para vereador, em 88, voltei cabisbaixo pela derrota na eleição e seu Jaime me perguntou:

– Por que não vieste pedir nosso voto?

 Eu respondi que, como era meu vizinho de porta, e me viu nascer, ter as fraldas trocadas e crescer, achava que não seria preciso. Mas na verdade não tinha pedido por vergonha.

– Toda nossa família votou em ti. Mas poderíamos achar que não precisavas dos nossos votos. Ficamos magoados. Pede sempre o voto! – ele me ensinou.

Volto agora à história da prisão. Assim que retornei da internação, era 97 e tinha uma condenação de seis anos para cumprir, em regime semi-aberto. Antônio Teixeira, vereador reeleito, me deu a oportunidade de trabalhar com ele na câmara durante o dia. Depois, a secretária Loreny Bittencourt me convidou para trabalhar no governo Mucillo, resolvendo o pagamento de FGTSs em atraso. Quando José Stédile ganhou a prefeitura, em 2000, conhecia meu trabalho voluntário nas igrejas para ajudar dependentes químicos e me convidou para ser seu chefe de gabinete. Foi dele o incentivo para criarmos o projeto Cara Limpa, que ajudava em internações e na ressocialização.

Quem viu Cachoeirinha antes e depois sabe que o primeiro governo do Stédile mudou muita coisa. Lembro que recebemos a chave da prefeitura de um funcionário sem camisa e de chinelo de dedos. O Stédile estabeleceu uma relação com os servidores que fez a prefeitura funcionar. A qualidade do funcionalismo hoje é uma prova da mudança. Ele também abriu a prefeitura para a comunidade. O que hoje parece uma grande novidade nós já fazíamos há 18 anos. Todas quartas chegávamos às 3h da madrugada e saíamos às 20h, para atender a fila de gente no gabinete cidadão. O Stédile sempre foi muito popular.

Em novembro de 2006, veio aqui em casa e, daquele jeito rapidinho dele, mal desceu do carro e disse:

– Te prepara que tu vai sentar na minha cadeira.

– Tu tá louco? – perguntei.

Ele respondeu que eu era trabalhador, próximo a ele e tínhamos um jeito parecido de lidar com as pessoas. Eu disse que precisava antes ser presidente da câmara, para demonstrar capacidade de gestão.

– Te vira – ele respondeu.

Articulei bem e fui eleito em 2007. Construí a câmara nova, saindo do aluguel.

Minha primeira eleição a prefeito, em 2008, foi dificílima. Minha família sofreu muito. De cima de caminhões de som me chamavam de “maconheiro”, “ladrão” e “presidiário”. Minha mãe entrou em depressão, dizia que tinha vergonha dos vizinhos. Fui eleito. Devo à popularidade do Stédile, ao apoio dos vereadores, à minha história de superação, que os ataques de certa forma ajudaram a divulgar para a cidade inteira, e ao trabalho com dependentes nas igrejas, nas empresas… Minha sorte foi naquele período já estar se quebrando o preconceito de falar em drogas. Afinal, quem não tem casos na família?

A parceria com o Gilso Nunes também foi muito importante, na eleição e reeleição. Quando me falaram que ele, que já tinha sido prefeito, talvez aceitasse ser meu vice, achei que fosse lorota. Comentei com o Stédile, que sugeriu marcar uma reunião com ele. Pedi para o Ibarú, hoje vereador e que tinha sido internado comigo, sondar.

– Dá para fazer! – disse ele, na volta.

No outro dia fui falar com o Gilso:

– Tu já foi prefeito e é mais conhecido que eu, mas sou o candidato do governo. Quer ser vice?

– É tu o candidato ou é o Miki?

– Eu.

– Me dá uma semana.

E aceitou. Com todo PMDB junto.

Como o próprio Stédile disse em sua biografia, considero que fui um fazedor de obras, algumas com financiamentos que ele preparou com a recuperação financeira da prefeitura. Revitalizamos a Flores da Cunha, duplicamos a Ritter, fizemos o conduto forçado, asfaltamos ruas. Mas meu orgulho foi o trabalho na educação. O trato que fiz com o Stédile foi indicar minha secretária da educação já no último ano do governo dele. A Elisamara Roxo ficou no cargo os oitos anos. Foi possível preparar a entrega de materiais escolares e uniformes, por exemplo. Isso dá auto-estima para a criança, tira aquela coisa de competição. Demos cadernos de capa dura, lápis Faber Castell, tesoura Tramontina. Muitos podem achar uma política assistencialista, mas você percebe a diferença quando uma mãe relata que antes comprava um caderno e dividia entre três filhos, ou que a criança faltava aula por não ter roupa para vestir. Cada escola escolheu seu uniforme e os detalhes nas cores ajudaram a patrulha escolar a identificar alunos em bairros longe da escola de origem. Encerrei meus governos com quase metade dos estudantes atendidos em escolas de turno integral, com três refeições por dia. O Ideb, principal indicador da educação, só cresceu. Na segurança, a Guarda Municipal passou a ter efetivo maior que a Brigada, ajudamos a equipar as polícias, e Cachoeirinha, que estava entre as dez mais violentas da região metropolitana, se tornou a segunda mais segura. Um símbolo é que a prefeitura era assaltada 3,4 vezes por ano. Em meus governos, uma. E no primeiro mês!

Também conseguimos criar a primeira comunidade terapêutica pública do RS. Uma metalúrgica queria se instalar na cidade. O dono me procurou. Eu disse que não teria como dar uma área. Ele me disse: “pega a chave desse sítio nas Águas Mortas que ofereço em troca por outra área no Distrito Industrial”. Mais de 300 pessoas chegavam a ser atendidas. Isso salva famílias, apesar de ser um trabalho árduo, onde as recaídas são uma constante, porque é difícil garantir a reinserção dos dependentes ao mercado de trabalho, por exemplo. Principalmente quem tem envolvimento com tráfico e tira R$ 5 mil por mês para entregar buchinhas numa esquina! Muitas vezes recebi agradecimentos de mães que diziam que fizemos o que podíamos, mas o filho tinha recaído, falecido ou sido assassinado. Hoje entendo que a comunidade pública não é melhor que convênios com entidades, porque falta continuidade com as trocas de governos. Mas acho que serviu para abrir o debate. A Dilma me chamou para conversar duas vezes, dei entrevistas para grandes redes de TV e fui tema de documentários da GloboNews e Discovery Channel.

A avaliação positiva do meu governo foi comprovada numa reeleição com 82% dos votos, proporcionalmente a maior do estado nas maiores cidades. No segundo governo, as dificuldades financeiras atrapalharam muito. Mas fizemos um mundaréu de obras, nenhuma com irregularidades apontadas ou superfaturamentos. Olha a grandiosidade da obra na Flores da Cunha! Tiramos vários serviços públicos do aluguel, o que gere economia todo mês. Fizemos um enfrentamento necessário na desocupação do Chico Mendes, que estava tomado pelo tráfico, o que me obrigou a andar por um tempo com seguranças, precisei esconder minha família na praia… Também fomos o único município da região a licitar e modernizar o transporte coletivo, trocar as paradas. Mas a crise econômica do país foi brutal, para Cachoeirinha e qualquer município brasileiro! O final da gestão foi turbulento com os servidores, mas não havia o que fazer, infelizmente. Peço desculpas por não ter podido fazer mais. Sou extremamente agradecido ao funcionalismo. Saio na rua de cabeça erguida. Aceito o elogio e a crítica. Sei meus erros, mas também valorizo meus acertos.

Não concorro pensando em voltar a ser prefeito. Entendo que meu tempo já foi, fiz minha parte, peguei meu banquinho e fui para casa. Quero é ser deputado estadual para ajudar Cachoeirinha, colaborar com soluções para o RS usando da minha experiência legislativa e administrativa como vereador e prefeito, além de focar na segurança pública e seguir a luta pelo tratamento e ressocialização de dependentes químicos. Hoje atuo na Febract, a federação brasileira de comunidades terapêuticas, que tem trabalhos nacionais reconhecidos, como na cracolândia de São Paulo, que podem ajudar aos gaúchos.

Como seu Jaime me ensinou, não deixarei de pedir o teu voto.

Meu número é o 40580.

 

: Vicente Pires com a esposa Sueli

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