O Seguinte: recomenda e reproduz o imperdível artigo do jornalista Carlos Guimarães, publicado pelo Medium.
Meu texto começa com ressalvas que o título não explica. Acho Neymar um craque. Um jogadoraço. Ele possui fundamentos que são admiráveis e muitos são executados em sua excelência. É um dos melhores dribladores do mundo. Tem poder de finalização com as duas pernas. É participativo no jogo. Raramente se nota Neymar omisso numa partida. É o quarto maior artilheiro da seleção brasileira. Por muito tempo, o Brasil era dependente de suas jogadas, de seu vasto repertório para encontrar soluções em situações aparentemente irreversíveis. Tem liderança, tem senso de colocação, talento, leitura de jogo e um bom porte para enfrentar jogos mais difíceis. No meu ponto de vista, é um dos cinco melhores jogadores do mundo. Potencialmente, não vejo ninguém melhor que ele, exceto Messi e Cristiano Ronaldo. Ou seja, em situações normais, seria um craque indiscutível. Mas não é. Neymarketing, Neymídia, o cara que só simula ter sofrido faltas, chamado pela imprensa britânica de trapaceiro. Chamado por alguns torcedores de mimado. Por outros, de gênio. Mas afinal, por que Neymar desperta tanto ódio, na medida em que é o nosso principal jogador?
Embora nesta Copa do Mundo tenhamos uma certa forçação de barra para explicar tudo através do viés da análise tática, fetiche que desconsidera um monte de coisa e que tá virando um produto analítico tão superficial quanto as análises que estes mesmos condenam — assunto para depois — , meu ponto aqui é entender as reações dele (Neymar) e do público, ainda que de forma rasa (sem pretensão alguma), pelo lado que mais impacta tais reações, que é o midiático. Antes de qualquer coisa, é preciso salientar que, com todas as virtudes mencionadas no primeiro parágrafo, e por causa delas, Neymar tem um poder sobre o time brasileiro, sobre o torcedor brasileiro e sobre o futebol brasileiro que lhe dá mais responsabilidades que qualquer outro, como funciona naturalmente com aquele que é diferenciado. E, definitivamente, Neymar é diferenciado. Justamente por isso que ele causa uma representação tão grande para uma geração que é fruto da proliferação de meios, de mensagens e de possibilidades. E vítima — não efeito — da completa ausência de referências desta geração. Ser melhor que os outros dá a Neymar tais poderes. Ser craque faz de Neymar uma vidraça perfeita, seja como espelho ou como alvo.
O surgimento de Neymar também conta pra que ele tenha esta significação. Ele aparece num hiato deixado por aqueles que não tiveram longevidade (Ronaldinho, Adriano, Kaká), por aqueles que não eram nada daquilo que a gente pensava (Robinho) e daqueles que, de certa forma, nos frustraram ou enganaram (Ganso e Pato). Em 2010, pensava-se que Ganso seria o craque e que Pato seria o sucessor de Ronaldo. Neymar era o driblador moleque, quase um novo Robinho. Era o garoto atrevido, irresponsável e, quase numa ação premonitória, já chamado de mimado. O problema é que a geração anterior não foi forte (psicologicamente ou fisicamente) o suficiente para sustentar a chegada de Neymar. Seus “parças diferenciados” não o acompanharam. Ganso ficou nos anos 1970. Pato, num desfile de moda. Sobrou para Neymar, por exemplo, tentar conduzir uma seleção que tinha o lado emocional em frangalhos, em 2014. Mesmo os mais experientes não eram tão fortes assim. Somente Júlio César era titular absoluto em 2010. Thiago Silva e Dani Alves, reservas em 2010. Ramires e Maicon, outros remanescentes, reservas em 2014. Toda geração precisa de uma anterior para se equilibrar. Neymar não teve isso. Pelo contrário, teve uma pressão enorme, uma interrogação gigantesca e uma cruel exigência de ser, aos 22 anos, nome, craque, artilheiro e campeão. Não é exagero dizer que o 7 a 1 também foi porque a seleção perdeu seu norte, sua diferença, um alicerce de 22 anos, sem experiência internacional em Mundiais, sem “parças” para dividir esse fardo. Nem com Pelé fizeram isso. Nem com Maradona. Nem com Messi, que precisou coadjuvar em 2006 para, só aí, ter uma pressão monumental. Ninguém aos 22 merece carregar o mundo em suas costas.
Neymar é o primeiro craque brasileiro “nascido e criado” totalmente no ambiente da Internet. Quando Ronaldo apareceu, tudo isso aqui era mato. Quando Ronaldinho era o melhor do mundo, não havia redes sociais. A “nova internet”, a atual, com essa arquitetura, é aquela que vê ad infinitum o duelo que Messi e Cristiano Ronaldo travam para ser o melhor do mundo. Sem ídolos, sem referências, com uma imagem carismática e um futebol acima da média, era o ídolo perfeito. Em tempos de internet, a mídia também precisa de assunto. É muito espaço para pouca coisa. Então, tudo vira pauta. Só que não era só isso. Se antes a relação entre ídolo e fã era unilateral, ou seja, o ídolo era a meta e não o contrário, a relação de Neymar com seus fãs se retroalimenta. Ele também é fã e usa as redes sociais. Logo, da mesma forma que a garotada imita Neymar, Neymar imita a garotada. Desta forma, nasce o primeiro produto de mídia 3.0 no país. E, por ser mais “poderoso”, um prato cheio para esta mídia.
Assim, Neymar passou a demonstrar os mesmos sintomas que possuem os millenials. Além de vestir (seja de forma consciente, programada ou por simples proteção) a carapuça de celebridade-modelo, passou a ter os mesmos comportamentos de seus seguidores. Neymar não se pronuncia muito sobre política, coloca qualquer saída de casa nos stories do Instagram e moldou drasticamente sua imagem através das redes. É uma alteração medida para que a imagem do craque seja justamente essa, a de retrato de uma geração. Expõe milimetricamente sua vida pessoal, propositadamente deixa a um adulto (sic) o gerenciamento da carreira e não nega que tem um projeto pessoal de se tornar o melhor do mundo. Uma paisagem perfeita do que são os chamados adulto-meninos, que atualmente infestam as redes sociais à procura de propósito para qualquer coisa. Essa geração, que sai de casa só aos trinta e poucos, rejeita empregos por “não ser à sua altura”, acredita que a explicação de tudo está no Google, precisa compartilhar até sujeira no dente, despreza os mais velhos e reage mal a hierarquias, organizações e sistemas, vive uma relação de perfeita harmonia com o ídolo. Ele a entende. Ele faz parte. Entretanto, há um efeito que é notado: cria-se uma distopia social de crianças na hora errada, com gente de 30 anos fazendo hashtag BRUMAR, lotando nosso vocabulário de memes, achando a solução mágica para qualquer coisa, fazendo a revolução de cima da cama e bestializando ainda mais a parca cultura que as nossas relações ainda possuem.
É claro que, no caso de Neymar, há agravantes que tensionam ainda mais o seu comportamento. Ao contrário do menino-adulto de 27 anos que posta no Instagram a sua frustração por ter acabado a Nutella do supermercado, Neymar tem uma projeção muito maior. Ele tem propósito. Justamente por isso, é preciso dizer que, ao contrário do que nossos jovens pensam, não é tão simples assim arcar com essa carga. Desta forma, Neymar não pediu pra ser essa espécie de baluarte millenial como eu dou a entender. Honestamente, não sei se Neymar queria isso. Acho que não. Porém, como cabe a qualquer ídolo que estampa uma camiseta nossa, esta é uma proposta que você não poderá recusar. Ele assume naturalmente todos os benefícios dessa causa e escancara repetidamente todas as mazelas de ser um millenial. Não sei se eu faria diferente, sou mais velho. Talvez não. Porque a gente precisa pertencer a alguma tribo. Porque, aos 26, mesmo rico, famoso e craque, ele só é mais um adolescente na fauna dos adulto-meninos. Aquele que não sabe ouvir não, que quer ser o melhor, que precisa do pai pra gerenciar uma carreira, que ostenta a vida perfeita nas redes sociais e que busca o prazer próprio acima das responsabilidades usuais que, em outros tempos, um adulto teria. Neymar não precisa dessas responsabilidades, mas tem outras. Por isso, ele chorou depois da vitória contra a Costa Rica. Por causa da pressão, do desafio de voltar a jogar depois de um tempo inativo, das porradas que a imprensa dá e das interrogações que a torcida tem.
Ao contrário do papel pronto de vilão e de herói, Neymar, no fundo, tem outro significado. É mais que um porta-voz ou um emblema. É o guardião de uma geração, o improvável guia de uma legião que está pronta para não crescer, título dado a ele sem consentimento. A crueldade não vem de Neymar. Vem da promoção gratuita da sua imagem e da completa falta de perspectiva de uma geração que abraça um ídolo que ela nem se dá o trabalho de conhecer. Por isso, Neymar merece ser compreendido e absolvido. Não só pelo talento, pela genialidade e pela vocação incrível de ser um grande jogador de futebol. Neymar merece ser compreendido e absolvido por seus atos. Ele não é causa, ele é consequência. Porque, no fundo, ele, produto midiático (que não é o sinônimo de fraude, é apenas um cara diferenciado no que faz, numa atividade superexposta e com ingredientes que alimentam qualquer narrativa midiática), fruto da espetacularização frenética pós-moderna, cara e coragem pra se expor, também é um ser humano. Ele é tão “gente como a gente” (ou como vocês, jovens-adultos) que posta o desabafo, a indireta, o descarrego, nas redes sociais. Talvez fosse mais fácil pra ele driblar e ser feliz, sem pressão, sem essa cruel exigência que a gente precisa depositar em quem é melhor que os outros. Talvez fosse mais fácil jogar bola e ir pra casa. O problema é que viver e ser feliz não tem mais graça nenhuma se não aparecer no Instagram.
Carlos Guimarães é jornalista (PUCRS); comentarista esportivo (Rádio Guaíba); mestrando em Comunicação e Informação (UFRGS); especializado em Jornalismo Esportivo (UFRGS).