No aeroporto o menino perguntou:
– E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
– E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternura e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes
da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianças.
E ficou sendo.
(Manoel de Barros, in: Livros infantis. Poesia completa. p. 469)
Augusto, meu filho, disse-me, certa vez, que me amava do tamanho de cem patos empilhados um sobre o outro. Aí está a liberdade de que fala o poeta: o amor não precisa ser medido abstratamente, com infinitos ou universos. Se, para nós, fez sentido imaginar patos empilhados e se isso nos comoveu de alguma forma, o pensamento infantil e a poesia nos redimiram. O quanto há de libertador nisso!
Cotidianamente, somos muito práticos. Vidas mergulhadas em trabalho, estudo, congestionamentos e faturas de cartão de crédito. Talvez seja por isso que assistimos a tantas barbáries: abandonos, assassinatos, estupros, corrupção. A violência que nos assola, a indiferença e a intolerância que marcam nossa geração passam por esse silêncio a que relegamos a voz da poesia e das crianças, da arte e da cultura.
“Isso não é importante”, já teremos dito alguma vez, de olhos vidrados no celular, quando nossos filhos vieram nos contar sobre a sutileza da diferença entre “tropicar” num passarinho ou num passarinho triste. Não é um pensamento simplista, como costumamos pensar em relação às crianças. É bastante rico e complexo, basta ter um pouco mais de atenção.
O poeta mato-grossense Manoel de Barros é exímio em captar essas sutilezas. A relação estreita de sua obra com a natureza, e o constante jogo que propõe com as palavras é de uma ternura e de uma riqueza estética sem par. Não é à toa que é um dos grandes poetas brasileiros, e um de meus favoritos.
Eu, que sou amada do tamanho de cem patos empilhados, ouço a voz de meu filho e continuo tentando pensar na diferença entre um avião tropicar num passarinho ou num passarinho triste. Há vida para além dos compromissos, das contas e das pautas. E essa vida com poesia, acreditem, é muito mais libertadora.