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A lição delas para os brigões

Clássico foi disputado em Gravataí | fotos EDUARDO TORRES

Alguém com título de Libertadores da América, do Brasileiro e Seleção Brasileira no currículo atuando em Gravataí. É de se esperar casa cheia, frisson e todo o tipo de tietagem. Mês passado, o ídolo colorado D’Alessandro arrastou mais de mil pessoas a um jantar na cidade, só para vê-lo, por exemplo. Mas quem carrega aquele histórico não teve a mesma recepção festiva. E já está acostumada a isso.

Era Leidiane Machado Cardoso, a Leidi, de 24 anos. Gravataiense da Morada do Vale, ela é a lateral-direita titular do Internacional, e na quarta, dia 23 de maio, atuou para cerca de 200 pessoas nas arquibancadas do Vieirão, durante o Gre-Nal válido pelo Brasileirão Série A2. Antes de vestir a camisa colorada, foram sete anos longe de casa. Passou pelo Porto Alegre, onde, aos 17 anos, ganhou oportunidade na Seleção Brasileira. Depois, atuou pelo Kindermann, de Santa Catarina, pelo Foz, do Paraná, São José, do interior de São Paulo, e, mais recentemente, pelo Corinthians, onde conquistou seus principais títulos.

É claro que ela sonha em um dia ter o reconhecimento que o seu histórico, mesmo com apenas 24 anos, merece. Mas naquele dia, a alegria estava completa.

— Eu sempre sonhei em jogar profissionalmente aqui na minha casa, na minha cidade. Na frente da minha mãe, da minha família e dos meus amigos — disse a lateral.

No outro lado deste confronto, com a camisa tricolor, estava outra gravataiense. A volante Roberta Cristina da Rosa, a Beta, 29 anos. Ela também tem no currículo uma peregrinação em busca de um lugar ao sol no mundo da bola. Saiu de casa, no bairro Boa Vista, aos 21 anos. Rodou pelo Pelotas, Kindermann, São Paulo, ACBF (futsal) e Chimarrão (futsal). Desde o ano passado, está no Grêmio, e neste ano, tem jogado em casa, já que o Vieirão é onde as Gurias Gremistas mandam seus jogos no campeonato nacional.

— É sempre melhor conseguir trabalhar com futebol estando perto de casa, das pessoas que a gente gosta. Toda a vez que jogamos para o público que for, o desafio maior é botar o futebol feminino no lugar que ele merece — diz a volante, que deu seus primeiros chutes aos 11 anos, e primeiro foi centroavante, antes de ser deslocada para a defesa.

Beta e Leidi são dois exemplos do quanto o futebol feminino floresce entre Gravataí e Cachoeirinha. As duas foram atletas do Garrincha. Time de futsal daqui, que conquistou o estadual em 2012 e é origem de muitos nomes hoje conhecidos em todo o país no esporte.

Cerca de 200 pessoas estavam na arquibancada do estádio Vieirão. Quando a bola rolou, as duas antigas amigas viveram situações bem diferentes. De um lado, Leidi, na lateral-direita, cumpria funções mais defensivas na equipe colorada. Ainda assim, foi eram dos pés dela que boa parte das jogadas de perigo do Inter surgiam. E foram muitas, desde o início do jogo, quando toda a iniciativa foi do Internacional.

Do outro lado, Beta, que vestia a camisa 16 do Grêmio, não estava entre as titulares. Foi do banco que ela assistiu apreensiva à pressão colorada, que não demorou muito a se refletir no placar. Ao final do primeiro tempo, já estava 3 a 0 para o Inter.

— Por que não virar o jogo? No futebol, eu já vivi muita coisa. O principal é ter os pés no chão e acreditar no trabalho que se faz. Nós temos uma equipe menos experiente este ano, mas queremos muito ganhar sempre — disse a Beta no intervalo.

Ainda levou mais 15 minutos do segundo tempo, e outros dois gols do Inter, pra que o técnico gritasse: “Beta, vamo!”

No outro lado, a camisa 2 colorada virou zagueira na etapa final do jogo. E deu conta do recado contra um Grêmio que fazia de tudo para reagir, mas faltava força.

Beta entrou também na defesa. E ficou difícil entender porque não estava no jogo desde o início. Anulou a principal jogada ofensiva colorada, nas combinações entre a cachoeirinhense Karina e a centroavante Daiane Moretti. Não havia muito mais o que fazer para mudar o panorama do jogo. As gremistas ainda conseguiram marcar um gol aos 42 minutos finais, mas o clássico acabou determinando a eliminação das Gurias Gremistas e encaminhou a classificação das Gurias Coloradas para as semifinais da Série A2.

— O importante mesmo foi termos o jogo aqui na nossa região. Porque, mesmo tendo tantas meninas que sonham em jogar futebol, estamos muito carentes de projetos locais. Fico feliz de fazer parte disso. Quem sabe eu não consiga, enfim, um título nacional com a camisa do Inter? — a atacante Karina, que é um dos símbolos do futebol feminino da região.

Campeã estadual pelo Onze Unidos, de Cachoeirinha, ela mantém uma escolinha para meninos e meninas no clube amador até hoje. Ano passado, Karina estava no Grêmio. Agora, está de volta ao Inter, clube que a projetou no futebol feminino.

 

: Leidi conquistou o Brasil e a América com a camisa do Corinthians, agora, voltou para casa

De volta pra casa

 

Quando viu que não tinha jeito, e a filha realmente seria jogadora de futebol, Fátima Machado, 53 anos, a mãe da Leidi, confessa que fico angustiada. Sabia que o caminho seria árduo, porque encontrar clubes que dêem estrutura para as atletas é coisa rara no Brasil.

— Eu estava feliz, porque era o sonho dela, mas ao mesmo tempo preocupada. Não sabia até que ponto ela poderia acreditar — conta a mãe.

No dia do Gre-Nal, foi como um reencontro simbólico com a filha em casa.

— É bem melhor ver ela jogar aqui perto de casa, mas quando começa o jogo, não tem jeito, a gente fica com o coração na mão. Dispara.

Leidi deu seus primeiros toques na bola jogando com os dois irmãos. Depois, na escola, até receber as oportunidades nos primeiros times.

— O futebol feminino sofre muita resistência ainda. Não temos toda a visibilidade que o masculino tem, é muito difícil conseguir as oportunidades e deslanchar no esporte. Tem que batalhar muito para chegar longe — diz a lateral, que apesar da pouca idade, fala com a experiência que esta modalidade exige desde cedo.

Pudera, foram sete anos longe de casa. Hoje, Leidi é uma exceção no cenário do futebol feminino. Ela consegue viver só do esporte e cursa universidade.

 

E depois do Brasileiro?

 

O clássico se encaminhava para o final quando um torcedor, certamente alheio ao mundo do futebol feminino disparou, insatisfeito com o time gremista:

— Vocês não jogam nada. Tem que tirar vocês da folha de pagamento do Grêmio!

Seria bom ele saber que, pouco antes de iniciar o Brasileirão A2, a Beta, como a maior parte das atletas que se aventuram a ser jogadoras de futebol no Brasil, estava procurando saídas. Vinha trabalhando em uma metalúrgica.

 

: Beta já rodou o Brasil pelo futebol, e ainda tenta sustentar-se somente com a bola

— Não tem outra maneira. Passei muito trabalho em São Paulo e em todo esse período que joguei fora daqui. Tenho um sonho, e por isso eu não desisto do futebol. Sempre imaginei a Seleção Brasileira. Mesmo já com 29 anos, quero seguir trabalhando tendo como meta melhorar a cada dia — diz a volante.

Se, no futebol masculino, não estar em um clube de ponta é sinal de incerteza para o atleta a cada final de campeonato estadual, imagina para elas.

— Agora acaba o Brasileiro e fica aquela dúvida, né. Só tem o estadual lá mais para o final do ano, mas não sei mesmo o que vai acontecer. Vou continuar batalhando sempre — garante.

Para que o corneteiro aquele saiba, a ajuda de custo média de uma atleta no Grêmio não passa dos R$ 600. Em todo o futebol feminino brasileiro, os maiores salários raramente passam dos R$ 5 mil.

 

SAIBA MAIS

 

: Após o Gre-Nal, o Internacional garantiu sua passagem para as semifinais da competição, ao golear o Vila Nova-ES no Estádio Beira-Rio. As Gurias Coloradas, com isso, estão a dois jogos do acesso à primeira divisão do futebol feminino brasileiro.

: A derrota no Gre-Nal sepultou as chances gremistas de classificação. Ainda assim, as meninas foram a São Paulo na rodada seguinte e golearam o Embu das Artes por 4 a 1. Beta marcou um dos gols.

: Para ficar por dentro do Brasileirão Feminino, acompanhe pelo site da CBF.

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