Não foi um cartaz. Foram vários. Não é uma postagem. São várias. Mais de trinta anos depois da redemocratização, alguns brasileiros pedem intervenção militar para ajudar o país. As razões não são tantas assim: só os militares e sua linha dura são capazes de prender os corruptos; com armas, eles podem entrar no Congresso Nacional e expulsar os políticos de lá; só os militares podem invadir o morro e matar todos os traficantes existentes no Brasil; os militares são seres acima de qualquer suspeita, com princípios, coerência e seriedade; militares não precisam ou não querem o poder; o país precisa ser moralizado e só os militares podem fazer isso e por aí vai. É verdade que estamos diante de um caos, onde há um descrédito completo em todas as instituições. Até a escola, para alguns, se ocupa de uma “narrativa cultural hegemônica que promove o monopólio cultural”. A imprensa é um instrumento para difundir inverdades de acordo com o seu lado. Passam imunes a tudo isso três instituições: militares, Igreja católica e a família. Ou seja, para o poder, meu pai, meu capitão ou o Espírito Santo (amém). Mas não é só isso não. O real motivo por esse frenesi da “intervenção militar” como solução passa por uma questão que é muito mais grave que uma simples desinformação do que realmente foi o período da ditadura: a total incapacidade do brasileiro de pensar em grupo, de compreender contexto histórico e, por fim, de medir o mundo de acordo com o tamanho do seu umbigo.
Volta e meia, a gente se depara com aquele discurso clássico de “no meu tempo era assim”. É uma coisa de velho, mas que é absolutamente compreensível. Não há nada mais confortante que a nostalgia. Quando a gente está triste, basta ouvir aquela música que embalou o verão dos 16 anos que tudo passa. Ou rever vídeos antigos, ler livros que dizem alguma coisa, assistir novamente a um jogo que nos fez chorar. Somos nostálgicos por natureza e por proteção própria. A nostalgia funciona como uma espécie de campo de força, uma posição fetal debaixo de cobertas em dia frio, um abraço apertado da mãe quando a gente chora, sendo, sobretudo, um recado para que a gente possa seguir em frente. A nostalgia transforma o copo meio vazio em copo meio cheio em instantes. É melhor que um confessionário, uma reza ou uma terapia. É a revisita à nossa própria existência, num sentimento confortante, melancólico e, no final das contas, revigorante. A gente olha para o passado para nos compreender. Logo, dizer que alguma coisa acontecia “no meu tempo” é dizer que a gente era feliz e, aparentemente, sabia. Ou não.
O discurso, pois, é de que na época dos militares não havia violência, não havia corrupção, políticos eram mais honestos (e quem não fosse, cadeia e tortura), “bandido ia para a cadeia ou morria”, saúde e educação funcionavam, os valores da família eram respeitados e que todas essas cousasmodernas são um mimimi do caramba. Aqui, dez casos de corrupção durante o regime militar. Durante a ditadura, verificou-se a ascensão de políticos como Paulo Maluf (preso só no regime democrático), Antônio Carlos Magalhães, clã Collor de Melo, José Sarney e outros. O tráfico de drogas organizado no Rio de Janeiro cresceu a partir dos anos 1970, com o abastecimento da cocaína colombiana e a divisão em facções, com o surgimento, por exemplo do Comando Vermelho. A expectativa de vida do brasileiro aumentou. O brasileiro passou a ter mais acesso à Universidade. Ou seja, a saúde e a educação não eram melhores. Não havia saneamento básico em boa parte do país. Havia mais miséria. Houve crimes bárbaros — não só contra “vagabundo que não quer trabalhar”, mas contra gente inocente, torturada e morta nos porões do regime. Bandido bom não era bandido morto. Era bandido organizado, que passou a controlar diversos pontos das periferias brasileiras. Os valores de família eram basicamente o pai provedor das coisas, a mãe submissa dona de casa e os filhos que seguiam o mesmo caminho. Ou seja, os motivos pelos quais se pede intervenção militar não são verdadeiros. Mas, vamos lá, quem tá dizendo isso não viveu aquela época. Isso você leu num livro com narrativa cultural esquerdista hegemônica blá blá blá. Pois bem, se você não acredita em livros de história, nem nos fatos, a gente sabe porque você quer a volta da ditadura militar: a boa e velha nostalgia.
O mundo que a gente vê não é o mundo real. A gente vê um mundo que é apresentado a nós e decodificado conforme a nossa ótica. A gente vê o mundo que está na nossa frente. A gente é triste ou feliz de acordo com o nosso entorno. Com o nosso mundo. As pessoas que querem a volta da ditadura militar pedem a intervenção porque, possivelmente, eram felizes durante os anos de chumbo. Felicidade não é o que a gente quer, é o que nos apresentam. Ou o que nos informam. Eu, por exemplo, posso adorar uma pessoa, mas no momento em que eu descubro algo que eu não sabia dela, eu passo a detestar. Ou seja, a gente vê um mundo de acordo com as informações que a gente tem desse mundo. Se a gente vive esse mundo sem a informação real do que acontece nele, a gente acredita que ele é maravilhoso. Essa é a lógica de quem viveu no período da ditadura e alega que era melhor aquela época. É uma lógica, a grosso modo, que mistura um “me engana, que eu gosto” com um “se eu não conheço, é porque não existe”.
Isso é potencializado na era da pós-verdade. E é terrivelmente grave quando a gente acredita mais no nosso sentimento, nas nossas impressões (toda impressão humana pode e costuma ser falha) e na nossa nostalgia do que num livro de história. A tese é, definitivamente, maior que o fato. Para os fãs do regime militar, os mortos, presos e exilados mereceram porque eram vagabundos. A rigor, eles fizeram a mesma coisa que a galera do iogurte no Parcão. Eles se opunham contra o (a nova direita adora essa palavra) establishment da época. Como os nossos queridos de camisa da seleção. E, veja só, sempre fui a favor das manifestações da direita, porque eu dou o direito ao outro de protestar contra o que quiser, mesmo que seja, no meu ponto de vista, meio patético. Sou a favor de alguém colocar que quer a intervenção militar, porque sou a favor de todo mundo pedir o que quiser, desde cerveja quente até a diminuição do preço dos discos importados. E aí está a diferença, simples. Vocês querem uma intervenção militar porque vocês brincavam de carrinho de rolimã até às dez da noite sem que alguém quisesse roubar o carrinho. E depois estudavam, trabalhavam, criavam filhos e dormiam com o sentimento de que “tá tudo dominado”. Mas não estava. Você só era feliz porque não chegava a você a real informação sobre os casos de corrupção, o tráfico nos morros cariocas, os assassinatos e, olha só, os vagabundos que estavam soltos. Você acreditava no mundo que pintavam a você e isso era tão bom. Como assim, algum louco tá dizendo que era ruim aquela época? Eu vivi aquilo e era como um sonho, um sonho juvenil, onde éramos livres, trabalhadores e honestos. Uma sociedade perfeita, regida por gente perfeita. Só acredito vendo, é claro.
As manifestações pela volta de uma ditadura militar são um profundo e deprimente exercício de pura nostalgia umbiguista. Porque o indivíduo só pensa em como sua vida era melhor e não em como a vida de todos era melhor. Prefere se iludir com mundos maravilhosos, onde quem ousa dizer que não é tão maravilhoso assim, é preso, torturado e morto. A régua muda quando passa o balcão. Pensar assim só reforça uma total incompetência nacional em entender o mundo além do próprio umbigo. Se o mundo era melhor pra você, talvez não fosse melhor para o próprio mundo. Ele é maior que teu quarto, que teu corpo, que teu alcance. Você se abraça em nostalgia pra justificar uma barbárie. Se agarra nas quinquilharias do teu sótão pra fechar os olhos. E, o pior de tudo, você só pode dizer que quer uma ditadura militar porque a gente não vive uma ditadura militar. Senão, seria preso. Ou exilado. E, como já sabemos, é bem mais fácil ser surdo, cego ou mudo do que conviver com tanta informação, que só a democracia é capaz de produzir. Antes um burro feliz e conformado do que um consciente que aponta os problemas.