coluna da Sônia

Um piano em nossas vidas

Por um bom tempo, meus irmãos, eu e alguns amigos lá das bandas da Rua Guararapes, onde vivíamos, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, nos reuníamos, uma vez por semana, para assistir ao programa Norberto Baldauf e seu conjunto, na finada TV Piratini.

Sabíamos de cor todas as músicas românticas que ele tocava no piano e que o guapíssimo Edgar Pozzer, vocalista do grupo (que chamávamos de "crooner" naquele tempo), cantava.

Um dia, bateram lá em casa, para perguntar se era verdade que tínhamos um piano, pois o Baldauf estava namorando um moça chamada Berenice, que vivia ali perto, e estava querendo tocar um pouco pra ela.

E, em poucos minutos, lá estava ele, aboletado na banqueta do piano, e todos nós a sua volta, deslumbrados por ver de perto, pela primeira vez em nossas vidas, uma celebridade da tevê.

Lembrei desta história, que estava enterrada no fundo da minha memória, esta semana, ao ler a notícia sobre sua morte…

Esse piano de parede, da fábrica alemã Müller Shiedmayer, que o pai havia comprado, com muito esforço, quando a Bia tinha sete anos de idade e eu, cinco, foi um suplício na minha vida.

O pai — que era filho de imigrantes italianos; que, aos oito anos, já era órfão de ambos; que havia sido criado pelos irmãos maiores, trabalhado desde pequeno  —, tinha, sem que soubesse explicar a origem disso, um amor imenso à música clássica.

E, por outro lado, acreditava que o melhor destino para suas filhas era o casamento. Mais adiante, trabalharia arduamente, para que frequentássemos um colégio chique, de freiras (uma espécie de “escola de esperar marido”, que abominei desde o primeiro dia e da qual escapuli assim que possível) e, em nossa adolescência, passaria a comprar, para nossos enxovais, bordados chineses e da Ilha da Madeira, que vendiam de porta em porta.  

Mas, como dizia anteriormente, quando eu tinha cinco anos, e a Bia, sete, materializou-se um piano em nossa casa. O pai borboleteava a sua volta, felicíssimo, porque seu plano de nos preparar para o casamento incluía dar-nos a oportunidade de aprender a tocar aquele instrumento.

E, dias depois, apareceu por lá um alemão ranzinza, que ele apresentou como nosso professor de piano. Não consigo lembrar seu nome, mas ficou, na minha memória, como uma criatura horrível, sem tino algum para lidar com crianças.   

Eu me dei conta, de cara, que aquele assunto não me interessava em absoluto, mas a Bia, que tinha muito ouvido (assim se dizia naquela época), logo estava tirando um monte de músicas modernas no piano, o que, naturalmente, deixava o tal professor furioso.  

Ele gritava: “Bia, estás proibida de fazer isto! Volta às escalas!” E, enquanto ela pressionava as teclas brancas e negras com os dedos de uma mão, e depois com os da outra, ele ia cantando os nomes das notas…

Lembro do pai maravilhado com o início das nossas aulas e de quando ele exclamou, ao me ver tentando lhe dar o gosto de ser uma boa aluna (o que só durou alguns dias): “Vejam o tamanho dos dedos desta menina! Ela tem dedos de pianista!”. 

Agora, digitando rápido no teclado do computador — sim, digito rapidíssimo, pois, se as escalas das aulas de piano jamais me interessaram, as das aulas de datilografia (asdfg, çlkjh, asdfg, çlkjh…) me deixaram encantada —, penso: “Pena o pai não poder estar aqui, para ver como meus dedos de pianista serviram, afinal, para algo”.    

Quatro anos depois do início de nossas torturantes aulas de piano, o pai aceitou cancelá-las, diante do argumento de que, se não o fizesse, Bia e eu esgoelaríamos o tal professor.  

Tempos depois, estudei, também, sempre por insistência dele, um pouco de acordeom e um pouco de violão, mas aquilo não era, definitivamente, a minha praia.

No entanto, estou certa de que todas essas aulas e as 200 mil vezes em que ele nos fez ouvir, em sua “eletrola”, os mesmos concertos, ora com uma orquestra, ora com outra, ora sob a regência de um maestro, ora sob a batuta de outro, foram decisivas para que eu viesse a amar tanto a música clássica e vários outros gêneros musicais.   

Nada foi em vão, Velho Fidel…   

 

 

 

 

 

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