Nem tudo foi retrocesso em 2017: há algo importante que se move e não é para trás. É a coluna da Eliane Brum no El País que o Seguinte: reproduz e recomenda
Ele estava lá, o homem perplexo. Ele tinha dito qualquer coisa como “gostosa” para uma jovem mulher. E ela tinha mostrado o dedo, bem na sua cara. Tipo “te liga”. Ele explicava que aquilo não era abuso, era cantada. E a cada vez que explicava parecia encolher de tamanho. Acostumado ao topo da cadeia alimentar por quase toda uma vida, porque ele já era um velho, ele não conseguia compreender porque os lugares haviam mudado. Ele não podia mais fingir que era desejado, ele não podia mais dizer o que queria, e por fim ele desabafou que não era capaz de viver num mundo em que uma mulher não gostasse de ser chamada na rua de gostosa por um homem como ele. De repente, ele tinha ficado muito mais velho. E perguntava: mas por quê? E tenho certeza de que ele não estava blefando. Ele não sabia. Porque por tempo demais não precisou saber. E agora precisa. Naquele exato momento, aquele homem perdeu o último pinto que ainda ficava duro. E não tinha a menor ideia sobre como alcançar potência sendo o que não sabia como ser.
De tantas cenas fortes deste ano, a minha foi essa pequena, quase despercebida. Um desacontecimento que desvela um acontecimento feito onda.
Há uma brutalidade objetiva no que vivemos, no Brasil e em boa parte do mundo, que se acentuou ainda mais em 2017, neste período da história que talvez possa ficar conhecido como a paródia que ele também é, a da boçalidade do mal. E como já sabemos, em fases assim os anos não terminam nem começam, apenas se emendam, e a boçalidade do mal acordará em 2018 tão boçal quando dormiu em 2017. Possivelmente sem sequer saber de si, porque é constitutivo dos boçais ter certeza sobre tudo, inclusive sobre aquilo que menos conhecem, que é sobre si mesmos. Quem sabe de si tem dúvidas enormes, acorda sobressaltado à noite duvidando do seu próprio rosto. Os boçais jamais as têm, pensam que a máscara que colaram é sua única face e repetem muito a palavra “verdade”.
Não é preciso fazer aqui a retrospectiva de nossos horrores. Nós os conhecemos, eles se imiscuíram como parasitas íntimos, aproveitando-se das fissuras que eles mesmos abriam na nossa pele e foram nos sugando a alegria. Mas há uma outra tessitura, uma que se costura numa camada abaixo dos acontecimentos, e que nos aponta onde está a vida e a possibilidade. Há algo que se move – e não é para trás.
As mulheres riscaram o chão. Com as unhas. Não é um de repente, é um processo. Mas algo emergiu com força, também por conta da facilidade de mobilização das redes sociais que, se destroem – e destroem –, também rompem. E fazem irromper. E quando escutamos o que nós mesmas dizemos, quando nos escutamos, é chocante que tenha sido preciso dizer.
Não, não é possível ejacular em nós nos ônibus, nos metrôs e nos aviões. Está vetado ejacular em nós em qualquer meio de transporte. Não, não é possível passar a mão na nossa bunda nas ruas ou nos corredores das firmas. Nem dar tapinhas. Não, não é possível dizer que a mulher é a parte chata da buceta ou fazer qualquer outra piada machista em festas ou em qualquer lugar. Não, não é possível mostrar o pinto quando passamos nem nos olhar de cima abaixo como se quisesse nos lamber. Não, não é possível nos chamar de gostosa ou emitir qualquer comentário sexual no espaço público. Não, não é possível dizer que “é das novinhas que eles gostam mais” nem que “panela velha é que faz comida boa”. Não é possível. Acabou.
Um não é um não. Não é um sim disfarçado, não é não mesmo. E um homem terá que ser mais sensível, se esforçar mais, para entender quando há consentimento para olhares e para aproximações e para sexo. Um homem, se ainda não sabe, porque muitos já sabem, terá que aprender a escutar melhor. Não é tão difícil assim, desde que se compreenda algo muito simples: um não é um limite inultrapassável.
E isso vale para os estranhos, isso vale para os amigos, isso vale para os solteiros, para os casados, para os que escolheram o poliamor. Isso vale.
Isso vale para a direita e vale para a esquerda. Isso vale.
Com consentimento, pode experimentar todas as fantasias, até a de não ter consentimento. Sem consentimento, não pode nada. Mas. Há um mas. Se em qualquer momento a mulher mudar de ideia e quiser parar, o consentimento vira um não. E um não é um não.
Não pode bater em mulheres. Não pode assediar e abusar de mulheres. Não pode violentar mulheres.
Não pode matar mulheres.
Entendo que, para um homem que sempre pôde tudo, porque em qualquer classe social e em qualquer raça os homens sempre puderam mais, parece difícil. O homem podia ser abusado pelo patrão ou abusado pelo branco, mas havia uma mulher que ele abusava depois. Em alguma instância da sua vida ele tinha esta outra a quem poderia impor sua vontade, subjugar. Assujeitar. Arrebentar. Um dia matar.
Está terminando o autoconsentimento tácito do homem sobre a mulher, produzido pelo silêncio, pelo preconceito, pelo domínio ainda masculino das instituições. Produzido como direito de nascença, que vinha junto com o pinto. Produzido pelo discurso do “ela provocou”, “ela estava pedindo”, “ela usava saia curta”, “ela tinha aquele decote”, “ela andava na rua tarde da noite”, “ela no fundo queria”. De nossos desejos só nós sabemos. Mas eventualmente podemos contar. E estamos contando. Basta escutar.
Quem pensa que está cada vez mais difícil ser homem, com mulheres que dizem não, tem razão. Deve ser bem difícil dividir o poder para quem sempre monopolizou o poder. E para alguns é o poder de falar sozinho que está em risco. Para alguns dos mais envernizados pela educação formal e pelos livros, o que dói mais é a perda do privilégio de ser a única voz na sala, na mesa do bar, nas livrarias. No palco.
E há algo que dói ainda um pouquinho mais, que é a perda do privilégio de se achar tão bacana, tão moderno, tão cosmopolita, até um pouco feminino. E então chega uma mulher – uma mulher! – e diz: seu rosto, este que você vê no espelho, não é o mesmo que eu vejo. E, olha, você não é tão importante assim, você não está aí rompendo paradigmas com seu discurso, seus posts name-dropping não nos impressionam. Quem está quebrando paradigmas são estas mulheres juntas, andando de mãos dadas pelas ruas.
Aí os envernizados, sentindo-se atacados em seus privilégios de homens e de brancos e de esquerda, adaptam o discurso dos toscos, daqueles que têm menos repertório para atacar. As mulheres então não são mais “as loucas”, “as histéricas”, aquelas “em TPM permanente”. Dizer isso seria se expor em demasia. A ideia de que enxerguem sua brutalidade os horroriza, é preciso exercê-la com palavras melhores e com referências, muitas referências, para encobrir a violência do discurso. Os “esquerdomachos”, uma das palavras mais interessantes que se consolidou em 2017, são sofisticados demais para dizer isso. O que eles dizem então, empacotando suas teorias em esperma e citações?
A mulher que conquistou espaços de poder e de fala, apesar de todo o machismo vigente, quando aponta privilégios de gênero e de raça “não entende os conceitos”, “nomeia erroneamente os fenômenos”, “é incapaz de debater”, “estava indo bem, mas perdeu-se”, “em vez de pensamento têm compaixão”, sua ignorância os constrange.
Os esquerdomachos arrancam frases do contexto, o que é uma forma de violência no debate público. Deslocam imagens também do contexto. Para ilustrar seus posts, buscam fotos em que a mulher parece raivosa, talvez porque estivesse falando sobre genocídios quando a fotografia foi tirada e jogada na internet. O carimbo machista do momento é justamente mostrar como as mulheres se tornaram “agressivas”, “raivosas”, “violentas”. E nada mais instantâneo que a imagem para “provar” esse “fato”. Vale tudo para exercer a misoginia sem parecer exercer a misoginia. O desonesto fala de honestidade, o sem ética fala de ética.
E então, sentindo cheiro de sangue, os lambaris acreditam que são tubarões, autorizam-se e acusam: “Sua velha!”. Porque uma mulher envelhecer virou não só sinônimo de perda de beleza e de potência num mundo masculino, mas também “velha”, uma palavra tão rica de sentidos e de experiências, passou a ser usada como palavrão. Ou outro clássico: “Espero que você morra de câncer, sem nem mesmo paracetamol para aliviar a dor!”. E, para não deixar dúvidas, passam a perseguir a mãe, a filha, as mulheres que aquela a ser destruída ama.
O truque já é um clichê. As mulheres, que passaram a vida de violência em violência, percebem a obviedade do propósito na primeira linha.
Os direitos das mulheres sobre o seu corpo seguirão sendo atacados em 2018. Os direitos às suas mentes, também, mas de formas mais capciosas. Em ano eleitoral, e numa eleição nebulosa como a que temos pela frente, o corpo das mulheres é convertido em moeda. Todas as formas de controle sobre nossos corpos, das mais evidentes, como a criminalização do aborto até em casos hoje permitidos pela lei, às mais sutis, como nos converterem em insanas ou em burras ou em raivosas, estará valendo.
Mais do que nunca teremos que andar juntas, de mãos dadas, também com os homens capazes de escutar e de dialogar de igual para igual. E andar juntas é também escutar, porque o “outro” tem o direito de problematizar tanto quanto “eu”. O direito que não tem é o de desqualificar a pessoa, em vez de enfrentar o seu argumento com argumentos. A premissa de qualquer diálogo é o respeito pelo interlocutor, mesmo que se divirja de suas ideias. Que venham mais livros com cada vez mais vozes e mais diferenças. E que os textos que buscam silenciar argumentos que perturbam sejam apenas esquecidos.
Nos Estados Unidos o ano começou com a marcha das mulheres contra Trump e termina com o barulho dos corpos dos abusadores caindo de seus postos em Hollywood. Mesmo que um homem seja um superpoderoso de uma das indústrias mais lucrativas, já não pode mais assediar, abusar, estuprar. No Brasil, alguns passos começam a ser ensaiados nesse sentido. Se as brasileiras romperem o silêncio sobre o que acontece nos bastidores de grandes empresas e também de redações da mídia, em universidades e coxias, algo por aqui vai se mover um pouco mais.
Pelo menos dois fatos possivelmente inéditos marcaram 2017: a Globo, maior rede de comunicação do país, afastou um de seus principais galãs de novelas por assédio sexual e rescindiu o contrato com um de seus jornalistas mais conhecidos por um comentário racista que se tornou público. São dois fatos de um Brasil que se move – e não é para trás.
Essa é a tessitura, de camada mais profunda, feita pelos feminismos – e também pelos movimentos negros e pelos movimentos LGBTQ. Essa segue, persiste, se complexifica, avança. Há muito para conquistar, uma enormidade. Ainda vivemos a boçalidade do mal da direita à esquerda. Mas o homem branco e heterossexual que ainda não compreendeu que terá que dividir poder e perder privilégios já começa a ser enfrentado. E o custo começa a aumentar.
De certo modo, este ano, que não começou em janeiro de 2017 nem acabará em 31 de dezembro, se iniciou com um retrato. O retrato de grande poder simbólico do primeiro ministério de Michel Temer: branco e masculino. E com a mulher relegada ao papel de primeira-dama “bela, recatada e do lar”, enquanto parlamentares, empresários e jornalistas, especialmente jornalistas, produziam textos e comentários embasbacados com a beleza e a juventude de “dona Marcela” e com a potência de Temer, construindo a paródia de um folhetim de Nelson Rodrigues com efeitos na narrativa política. Há todo um imaginário dos sentidos deste casal presidencial e de seus papéis, que produziu impactos na crônica de Brasília, e que ainda precisa ser desvelado para a melhor compreensão desse momento histórico.
Talvez, no campo das simbologias, seja interessante observar que 2017 termina com o marido de dona Marcela governando o país com uma sonda na uretra.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.