Mesmo na era das Fake News, poucas pessoas causam tanto rebuliço quanto Maria do Rosário, a deputada gaúcha assaltada ontem. Talvez em parte devido às diversas notícias falsas que circulam sobre ela, talvez devido às suas escaramuças com o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro, muitas pessoas comemoraram o fato nas redes sociais. Algumas, que até ontem ou anteontem estavam espalhando mensagens de amor cristão devido ao Natal, chegaram a lamentar que ela não tenha sido morta ou estuprada. É o cidadão de bem brasileiro.
Ok, pode ser que algumas dessas pessoas, mais ignorantes, tenham acreditado em alguma das notícias falsas sobre ela e a odeiem de forma “compreensível”. É difícil gostar de alguém que, no mundo das fake News, quer descriminalizar a pedofilia, chora a morte de bandidos que atiram na PM ou que propõe lei tornando obrigatório o acolhimento de presidiários nas ceias de natal das famílias brasileiras. Por outro lado, a população, sempre à procura de culpados fáceis, encontrou na deputada um bode expiatório para a crise de violência pela qual o Rio Grande do Sul passa. Enquanto a população se volta contra ela, outros políticos igualmente ou mais responsáveis, como o incompetente secretário de segurança gaúcho ou o presidente Temer, cujo indulto natalino mais generoso da história esvaziou os presídios com o objetivo de livrar a cara de seus correligionários presos por corrupção, podem ficar tranquilos enquanto a população “queima a bruxa”.
Apresentadores de programas policiais, políticos demagogos e comentaristas, agora com o auxílio da internet, construíram uma percepção de que direitos humanos são algo como um bando de palhaços, geralmente estudantes de humanas, vestidos de camisetões hippies e sandálias de couro e que gostam de abraçar bandidos. Pelo menos, essa é a impressão que me fica depois de ouvir certos comentários sobre os direitos humanos. Ocorre que direitos humanos não são pessoas ou grupos, mas sim… direitos. Direitos que são inerentes a qualquer pessoa, simplesmente pelo fato de que elas são… humanas. Desde os séculos XVII e XVIII, uma série de pensadores, todos eles liberais (não socialistas ou comunistas), como Locke, Beccaria e outros, passaram a questionar certas práticas que então eram corriqueiras. Uma delas, a punição extremamente desproporcional para faltas leves, como furto de comida ou mesmo ser rabugento. A ideia que vem dessa época é de que as penas devem ser proporcionais aos delitos. Se a pena para roubo e latrocínio, por exemplo, for a mesma – digamos, a pena de morte – por que o bandido se sentiria coibido de, ao roubar, também não assassinar a vítima, pois a pena é igual? Da mesma forma, crimes não violentos, como o furto podem ser melhor combatidos com retaliações financeiras do que com chibatadas, amputações ou mesmo a prisão. Certos populismos penais brasileiros recentes têm invertido esse princípio: o tráfico de drogas, que não é, necessariamente, um crime violento, pode render até 15 anos, já o mais nefasto dos crimes, que é o homicídio, pode render apenas 6 anos de detenção.
Outra ideia fundamental é que as pessoas têm direito a um julgamento imparcial. Isso é fundamental em qualquer lugar civilizado. Espera-se que ninguém possa ser, por exemplo, sentenciado à morte na hora por policiais que não estão preparados para julgar. Por isso, execuções policiais (não mortes decorrentes de trocas de tiros, o que pode ser um mal necessário) devem ser condenadas. O que impede que inocentes sejam mortos ao serem confundidos com bandidos por policiais mal treinados e estressados por jornadas longas, falta de equipamento e salários parcelados? Assim, falas como as de Bolsonaro, que defende que policiais devem ser premiados por matarem, precisam ser condenadas. Note que você pode ser favorável à prisão perpétua (eu sou) ou à pena de morte (não sou), mas isso não impede que exista um julgamento justo para tal. Outras práticas horrendas, como a tortura com o fim de obter confissão – ignorando que sob o efeito da dor, as pessoas confessam as coisas mais absurdas – também foram banidas a partir do argumento desses filósofos. Como você pode notar, os direitos humanos não são feitos para “defender bandidos”, mas para defender qualquer pessoa da arbitrariedade, da injustiça e da opressão estatal. Se você quer que o Brasil não tenha “direitos humanos”, lembre-se dos países que são constantemente denunciados por violá-los: Coreia do Norte, Irã, Arábia Saudita, Venezuela, Estado Islâmico… só lugar bom, não?
Certamente, porém, a deputada tem alguma parcela de culpa nesse ódio que desperta de parte da população. Sua atuação é parcial e suspeito que ela não leve os direitos humanos tão à sério quanto ela faz parecer. Não a vi criticando o governo venezuelano pelas constantes violações dos direitos humanos por lá e já a vi elogiando Cuba, que, digam o que quiserem os esquerdistas, é uma ditadura autoritária, que desrespeita vários direitos humanos da população cubana. Da mesma forma, ela disse no Twitter que “não há democracia quando a direita ganha”. Ocorre, deputada, que direitos políticos também são direitos humanos. Numa democracia, espera-se que haja um saudável conflito e debate público entre posições de esquerda e de direita (e não estou falando nos extremismos, que não devem ser tolerados), bem como alternância de poder entre governos mais à esquerda e outros mais à direita, todos eles referendados pelo voto popular. Ao negar isso, a deputada defensora dos direitos humanos acaba defendendo uma terrível violação dos próprios direitos humanos.