Dando sequência à série de textos na qual discuti o aumento brutal da violência na cidade de Gravataí, trago uma última explicação possível para a explosão das taxas de criminalidade: a teoria das janelas quebradas. Essa é uma teoria não muito óbvia, mas que deu resultados espetaculares nos lugares em que foi levada a sério pelas autoridades – eu tentarei mostrar que ela tem precedentes não-intencionais na própria Aldeia.
Basicamente, o pressuposto básico dessa teoria é que pequenas bagunças abrem o caminho a crimes graves. Como assim? Se você quiser combater os homicídios e assaltos, comece combatendo delitos menores, como pichações, urinar na rua ou descartar lixo em lugares proibidos. A ideia é que uma sensação de desordem e sujeira faz parecer que ninguém se importa com as coisas, que não há autoridade no local. Deixe uma janela quebrada em umafábrica e, em alguns dias, moleques quebrarão todas as outras. Tolere uma pichação e, logo depois, a cidade estará imunda. Deixe que descartem lixo em um terreno baldio e, logo depois, você terá um lixão. Em breve, coisas mais graves começam a acontecer.
Nova Iorque é o exemplo mais conhecido de como uma política de tolerância zero com as pequenas desordens pode ser extremamente eficaz para diminuir as taxas de criminalidade. Em 1980, Nova Iorque era uma cidade horrível, onde mais de 80% da população queriam ir embora. Gangues disputavam o terreno e a venda de cocaína e, depois, crack. A cidade era suja, pichada, lugares como o metrô ou o Central Park não podiam ser frequentados depois do final da tarde, e a taxa de homicídio era maior do que a média brasileira atual (naquele ano, era de 30 por 100 mil habitantes, enquanto a média americana era de cerca de 10 por 100 mil). Entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, a prefeitura (que lá, ao contrário daqui, é responsável pela polícia) iniciou uma política de tolerância zero. Pichações passaram a ser combatidas com rigor, entrar no metrô sem pagar dava cadeia e sujar as ruas multas pesadas. Vadiagem e achaque de flanelinhas aos motoristas passaram a ser combatidos de forma dura. O resultado foi fantástico. Apesar de a violência ter caído em todos os EUA desde o início de 1990, a redução foi muito mais drástica em Nova Iorque. Enquanto as taxas nos EUA diminuíram em cerca de 60%, em Nova Iorque a queda chegou a 90% (no país, a taxa caiu de 10 para 4, em Nova Iorque, de 30 para 3). Hoje, a cidade é mais segura do que a média do país e voltou a ser uma das cidades mais valorizadas e agradáveis do mundo.
Essa teoria de que sujeira e bagunça levam a comportamentos antissociais já foi provada por alguns experimentos bem interessantes (quem lê em inglês pode olhar aqui). Ambos foram feitos na Europa. Lá, a bicicleta é um meio de transporte bastante comum nas cidades. Os pesquisadores deixaram panfletos presos às bicicletas estacionadas em uma ruela, após terem retirado as lixeiras do lugar. A parede em frente ao bicicletário tinha uma placa de “proibido pichar”. Em alguns dias, os pesquisadores deixavam a parede limpa e pintada e, em outros, cobriam-na de pichações. Depois, contavam quantos ciclistas jogavam o papel no chão e quantos o levavam consigo (lembre que as lixeiras foram retiradas) quando a parede estava limpa e quando estava pichada. Não deu outra, quando a parede estava pichada, muito mais pessoas jogavam o papel no chão. Outro experimento é mais interessante, pois envolve um crime (furto no caso). Obviamente, por razões éticas, é impossível realizar um experimento que envolva violência, mas pequenos roubos foram autorizados pelo comitê de ética. Cientistas colocavam um envelope numa caixinha de correio de uma rua movimentada. Esse envelope deixava aparente uma nota de 5 euros (cerca de 20 reais). Em alguns casos, a caixinha de correio estava coberta por pichações, em outros estava limpa. Mesmo na civilizada Europa, as pessoas roubavam o dinheiro quando ele estava na caixa decrépita, o que não acontecia quando a caixa estava limpa. Ou seja, os experimentos mostram que as pessoas tendem a fazer coisas erradas em ambientes de sujeira e desordem.
Qualquer habitante de Gravataí tenderá a reconhecer que a cidade se tornou mais feia nos últimos anos. A pichação era um problema quase desconhecido na cidade. Há alguns anos, enquanto Porto Alegre estava tomada por rabiscos, Gravataí ostentava seus prédios bem pintados e muros brancos. Algumas ruas nobres do Centro, como a Anápio Gomes, hoje, possuem pichações em quase todos os prédios. A Dorival, a principal avenida do município, está coberta de pichações da parada 59 até a praça do Quiosque. Qualquer olhadinha no Google Street View confirma o que digo. Abaixo, uma imagem da Parada 72 em 2011 e outra em 2016. No mesmo período, a taxa de violência aumentou mais de 50%.
Não é só a pichação que toma conta da cidade. Ela tem enfeado de outras formas: prédios históricos são derrubados para construir estacionamentos (como ocorreu, recentemente, com uma casa colonial na Rua Dr. Luiz Bastos do Prado), as bonitas calçadas de pedrinhas portuguesas do Centro são substituídas por blocos de cimento, árvores são cortadas, a grama da praça Borges de Medeiros (recuso-me a chamá-la de Praça da Bíblia, como propôs um ex-vereador) é substituída por brita, etc. Tudo isso retira a escala humana da cidade, tornando-a inóspita para a vida a pé. Assim, as pessoas se refugiam em condomínios fechados ou em shoppings, únicos lugares onde é possível ter alguma segurança. A rua, assim, é deixada à mercê da bandidagem.
Não deve ser por acaso, assim, que Gravataí era muito mais segura no início dos anos 2000, quando a cidade era 4 vezes menos violenta do que Porto Alegre. Naquela época, o poder público e, também, os particulares pareciam estar dispostos a deixar a cidade a mais bonita possível. Programas da Prefeitura, como o Mais Praças, Mais Alegria e o Luzes da Cidade, multiplicaram os espaços de convivência e tornaram as ruas mais iluminadas, permitindo maior segurança noturna.
Obviamente, não estou dizendo que a violência de Gravataí é causada apenas por uma questão estética. Como eu mostrei na coluna da semana passada, as disputas pelo poder entre as facções do tráfico parecem ser a principal explicação. Mas, tentar combater anomias como as pichações e o abandono de espaços públicos é uma tarefa viável e que, como ilustra o exemplo de Nova Iorque, pode dar ótimos resultados.
Lembro que Porto Alegre também está sofrendo uma explosão de violência. Talvez não seja coincidência que ícones da capital, como o Mercado Público estejam cobertos de pichações e, uma das mais bonitas obras da arquitetura brasileira, o Viaduto da Borges, tenha virado moradia e banheiro de sem-tetos e assaltantes.