Desde o meio dia desta terça, não existe mais o ‘cadeião ao ar livre’ que fez aniversário em frente da Delegacia de Pronto Atendimento (DPPA) do Parque dos Anjos.
Os últimos 30 suspeitos que aguardavam nas celas improvisadas em veículos da Brigada Militar foram transferidos: os de menor periculosidade para a nova penitenciária de Canoas; os que se identificam com facções, para a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ).
Lamentável que tenha sido necessária uma tragédia, um atentado como primeiro tipificou o delegado de homicídios, um ‘incidente violento’ como caracterizou o facebook ou seja lá como se queira relativizar a descrição de um episódio onde dois jovens sem antecedentes criminais são mortos e 33 outros restam feridos em uma esquina da periferia.
Que tenha sido preciso um prefeito subir o tom à altura de seu volume político – de deputado reeleito com mais de 80 mil votos, secretário de estado, pela segunda vez no comando do terceiro PIB gaúcho e uma das maiores figuras da nova geração do partido que administra o RS e o Brasil – e, numa peregrinação pública, tirar da comodidade do discurso a cúpula da segurança, seu cabeça o secretário Cezar Schirmer e o comandante em chefe, o governador José Ivo Sartori.
Porque não bastou Marco Alba trabalhar quieto por meses – em meio a um noticiário de chacinas, cadáveres incinerados e vítimas cavando as próprias covas – e fazer da Guarda Municipal um órgão de segurança com mais homens e mulheres que a BM. Os reforços que vieram antes do atentado na Morada do Vale II eram insuficientes e muitos nem estavam mais na cidade. A central de operações da BM, ao receber uma chamada pelo 190, ainda acionava o 153 da Guarda. Pilhas de inquéritos seguiam se acumulando nas delegacias de Polícia Civil.
Foi preciso um pedido de socorro público e urgente, não mais enclausurado pela lábia dos gabinetes, quando a contagem de corpos ultrapassou os três dígitos, e a estatística fez de Gravataí, se um país, o terceiro mais violento do mundo – e noticiário internacional.
Custou sangue, humano e político, mas em dois dias forças especiais chegaram a galope pela Dorival, pela freeway e pelos ares. E agora, em uma semana, apareceram vagas suplicadas há meses, não só no ‘spa’ que é a nova penitenciária de Canoas, mas também na PEJ e na Cadeia Pública – o ex-Presídio Central.
Quem conhece um pouco segurança pública sabe que o cadeião a céu aberto prejudicava bem mais do que a paisagem da cidade, e tinha consequências bem mais práticas do que preocupar a Organização dos Estados Americanos (OEA), ONGs e órgão de direitos humanos que ficaram de dar uma olhada e, dos poucos que apareceram, menos ainda fizeram.
É bem simples: que vítima ou que testemunha não pensa duas vezes antes de prestar depoimento em uma delegacia onde, para entrar, precisa enfrentar um corredor polonês de suspeitos dos mais diferentes crimes? Quem sabe ali não está o acusado do próprio crime reportado, sendo servido de café, almoço e janta por brigadianos que poderiam estar patrulhando as ruas?
Inquéritos estavam sendo prejudicados com isso. Por preservação, e hierarquia das corporações, ninguém vai dizer sim no microfone, mas é. Investigações de homicídio não tinham autoria comprovada por medo de testemunhas. Aí, pode a Brigada bater o recorde da região metropolitana em abordagem e prisões, as inteligências e equipes de investigação podem destapar o ralo do Gravataí que, além do prende-e-solta, poucos vão cumprir penas antes de ser abatidos pela vida loka do mundo do crime.
Mas é importante dar parabéns aos envolvidos! É de bom tom, e sempre ajuda a ressuscitar a esperança em dias melhores. Porém, mesmo em um momento de celebração de uma solução presente para um problema que já dormia e acordava na rotina de Gravataí, há também de se perceber no acampamento de presos um sinal de fumaça, uma bandeira tanto da Brigada, como da Polícia Civil – fincada, assustadoramente, em uma das vias mais movimentadas, de uma das maiores economias gaúchas.
E é uma bandeira preta, como aquelas dos veraneios do passado que anunciavam mares revoltos, e que obriga aos comandos fincar pé para resistir ao repuxo da anarquia, por justa perante a opinião pública.
Manter aquela situação vexatória era também um olhai por nós, com viaturas estragadas e 25 PMs por turno, ou um policial civil para 2 mil ocorrências em 500 quilômetros quadrados de territórios disputados em uma guerra das drogas – real e moderna pelo esculacho da falta de escrúpulos ou de uma ética mínima de desviar o alvo de inocentes.
Dando o ponto: o cadeião também era uma bandeira dos que estão na linha de tiro, trabalhando em estruturas precárias e com soldos parcelados.
Esse é o furo da bala.
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