teoria geral do esquecimento

Contra o receio, a palavra

Tratar sobre o tema da violência contra mulher é sempre difícil, mas necessário. Refletir repetidamente é o que nos torna atentos e informados; é a única maneira viável de mudar uma triste realidade que nos cerca.

Notícias sobre casos de violência contra a mulher têm sido comuns, nos últimos tempos. O acesso à informação ampliou os espaços de denúncia, o que ensejou, de certa forma, algum encorajamento entre as mulheres. E isso, em minha opinião, decorre de dois fatores: primeiro, porque existe uma identificação. A cada relato feito e divulgado, associam-se outros relatos, o que acaba por criar uma rede de apoio. Essa rede é essencial e é o que as mulheres não encontram, muitas vezes, nas instituições a que recorrem. Basta dizer que os casos de abuso sexual são sempre subestimados: poucas denúncias são registradas nos órgãos oficiais, muito em razão da falta de acolhimento, que constitui a violência institucional.

No caso recente do homem que ejaculou numa mulher em um ônibus, na cidade de São Paulo, chamou-me atenção exatamente o problema da violência institucional. Li um relato em que foi mencionada a falta de acolhimento dos órgãos policiais, que não teriam disponibilizado sequer um psicólogo para o atendimento inicial à vítima. Seguido a isso, houve a sentença do juiz que liberou o agressor, “por não ter havido constrangimento”, e a reincidência do problema, visto que o homem cometeu o mesmo ato alguns dias depois, em outro coletivo da cidade. Não bastasse a situação em si, essa mulher – e todas as outras que se identificam com a injustiça de viver sempre com receio, nesta sociedade –  viram a violência redundar, justamente por parte dos órgãos que deveriam protegê-las.

Já li, em muitos obras da literatura, episódios de violência contra a mulher. A arte, nesse sentido, constitui-se como outra possibilidade de identificação tão necessária à reconstrução pessoal e coletiva. Na obra Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, a personagem Ludo, em uma determinada circunstância, tranca-se em seu apartamento, na cidade de Luanda, em Angola, e lá fica por mais de trinta anos. Inicia o período de confinamento com medo dos espaços externos, das pessoas e de tudo. O motivo para essa atitude drástica é relatado pela personagem, que rememora episódio vivenciado ainda em Portugal, onde morava:

 

“Uma tarde, ao chegar a casa, vinda da praia, dei pela falta de um livro que estava a ler. Retornei, sozinha, à procura dele. Havia uma fila de barraquinhas montadas na areia. A noite caíra, entretanto, e estavam desertas. Dirigi-me à barraquinha onde tínhamos estado. Entrei. Ouvi um ruído, e, ao voltar-me, vi um sujeito à porta, sorrindo para mim. Reconheci-o. Costumava vê-lo, num bar, a jogar às cartas com o meu pai. Ia explicar-lhe o que estava ali a fazer. Não tive tempo. Quando dei por isso já ele estava sobre mim. Rasgou-me o vestido, arrancou-me as calcinhas, e penetrou-me. Lembro-me do cheiro. Das mãos, ásperas, duras, apertando-me os seios. Gritei. Bateu-me no rosto, pancadas fortes, sincopadas, não com ódio, não com fúria, como se estivesse a divertir-se. Calei-me. Cheguei a casa aos soluços, o vestido rasgado, cheio de sangue, o rosto inchado. O meu pai compreendeu tudo. Perdeu a cabeça. Esbofeteou-me. Enquanto me açoitava, com o cinto, gritava comigo, puta, vadia, desgraçada. Ainda hoje o ouço: Puta! Puta! A minha mãe agarrada a ele. A minha irmã em prantos.

Nunca soube ao certo o que aconteceu ao homem que me violou. Era pescador. Dizem que fugiu para Espanha. Desapareceu. Engravidei. Fechei-me num quarto. Fecharam-me num quarto. Ouvia, lá fora, as pessoas a segredarem. Quando chegou o momento, uma parteira veio ajudar-me. Nem cheguei a ver o rosto da minha filha. Tiraram-na de mim.

A vergonha.

A vergonha é que me impedia de sair de casa. O meu pai morreu sem nunca mais me dirigir a palavra. Eu entrava na sala e ele levantava-se e ia-se embora. Passaram-se anos, morreu. Meses depois a minha mãe seguiu-o. Mudei-me para a casa da minha irmã. Pouco a pouco fui-me esquecendo. Todos os dias pensava na minha filha. Todos os dias me exercitava para não pensar nela.

Nunca mais consegui sair à rua sem experimentar uma vergonha profunda.”

(Trecho da obra Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa)

 

A narrativa fere. A expressão “vergonha profunda” ecoa por muitas páginas além. E ecoa justamente porque, apesar de ser um relato fictício, é verossímil em todos os seus aspectos: no ato de violência em si; na figura desse pai, que culpa a própria filha; e na representação de um sistema que, de uma forma ou de outra, faz a violência reincidir. Como ocorreu, na vida real, com a mulher no ônibus, em São Paulo.

Um fato como esse é impossível esquecer. Assim como são todas as pequenas situações – se não violentas, ao menos constrangedoras – que toda mulher é capaz de relatar. Mas esses relatos, sejam eles virtuais, literários ou orais, possibilitam a construção de uma identificação; unem e fortalecem; geram mudança.

Enquanto todas nós ainda tivermos de andar com receio, não nos calemos. Denunciar aos órgãos oficiais é, apesar de tudo, imprescindível. Abordar o tema é difícil, mas é nossa única ferramenta para gerar consciência e transformação.

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