tempos de apatia

Não pisarão no meu jardim

Na última semana, assisti a um vídeo de uma audiência pública no Senado Federal, no qual uma pessoa falava da culpabilização dos servidores públicos, discurso esse que tem sido recorrente, nos últimos tempos. Chamou-me a atenção o trecho de um poema citado na ocasião:

 

“Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.”

 

Os versos falam, gritam por nós, por todos os que o leem e com ele se comovem. Joga-nos à face nossa estagnação e parece retratar fielmente o momento em que vivemos: de direitos retirados, de exploração, de enganação e de silêncio. E isso não somente em relação aos servidores públicos. Em nosso drama diário, assistimos ao arquivamento de denúncia contra o Presidente, às discussões sobre as reformas trabalhista, previdenciária e política, ao aumento do preço do combustível, à aprovação de fundo bilionário para partidos, a malas de dinheiro e escândalos cotidianos, e não dizemos nada.

O poema, no entanto, não é recente; foi escrito em 1968, no auge do regime militar, pelo escritor brasileiro Eduardo Alves da Costa. É um poema longo e com uma curiosa história: foi, por diversas vezes, atribuído ao escritor russo Maiakóvski, em razão do título “No caminho com Maiakóvski”. Coloco-o, na íntegra, ao fim deste texto. Vale a pena cada linha. Deixou-me com os nervos à flor da pele; deixou-me na obrigação de escrever e de dizer algo.

Depois de lê-lo, lembrei-me do conto A casa tomada, do escritor argentino Júlio Cortázar. É, também, um texto primoroso, publicado no igualmente primoroso livro Bestiário, em 1951. O narrador e sua irmã, Irene, vivem sozinhos numa imensa casa. Certo dia, ele ouve um barulho e fecha uma grande porta, passando a viver com a irmã na metade que restou da residência.

 

“Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.”

 

Não há indagações, ninguém verifica quem tomou a outra parte da casa. Simplesmente, os dois irmãos, apesar de eventualmente lamentarem a situação, acostumam-se a viver com o que sobrou. Noutro dia, enquanto o personagem se dirige à cozinha, ouve de longe mais um barulho. Toma a irmã pelo braço e, com a roupa do corpo, sai. Sem perguntar. Sem saber quem tomou a casa. Os dois saem e não dizem nada.

Há infinitas análises sobre esse conto. Mas o que me fez trazê-lo à tona, após a leitura do poema de Eduardo Costa, foi justamente essa articulação entre a casa tomada e o silêncio. Estaremos sendo esses dois personagens de Cortázar, tricotando, fazendo a janta, cuidando dos filhos, enquanto o país está sendo tomado? Já nos arrancaram a voz da garganta? Não diremos nada?

Eu ainda tenho voz, eu ainda olho o que está acontecendo além da porta. Eu acompanho as notícias. Eu dialogo com meu filho. Precisamos estar atentos e não podemos nos calar, apesar do cansaço e da descrença que nos tomam.

Digo infinitamente pouco, com este texto: trato, sobretudo, sobre a necessidade de dizer. Para que não matem nosso cão, não pisem nosso jardim, não arranquem nossa voz, nem tomem nossa casa.

Aqui, o poema, na íntegra, com seu final apoteótico:

 

 

No caminho, com Maiakóvski

(Eduardo Alves da Costa)

 

Assim como a criança

humildemente afaga

a imagem do herói,

assim me aproximo de ti, Maiakóvski.

Não importa o que me possa acontecer

por andar ombro a ombro

com um poeta soviético.

Lendo teus versos,

aprendi a ter coragem.

 

Tu sabes,

conheces melhor do que eu

a velha história.

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na Segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

 

Nos dias que correm

a ninguém é dado

repousar a cabeça

alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;

e nós, que não temos pacto algum

com os senhores do mundo,

por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto

a ousadia me afogueia as faces

e eu fantasio um levante;

mas amanhã,

diante do juiz,

talvez meus lábios

calem a verdade

como um foco de germes

capaz de me destruir.

 

Olho ao redor

e o que vejo

e acabo por repetir

são mentiras.

Mal sabe a criança dizer mãe

e a propaganda lhe destrói a consciência.

A mim, quase me arrastam

pela gola do paletó

à porta do templo

e me pedem que aguarde

até que a Democracia

se digne a aparecer no balcão.

Mas eu sei,

porque não estou amedrontado

a ponto de cegar, que ela tem uma espada

a lhe espetar as costelas

e o riso que nos mostra

é uma tênue cortina

lançada sobre os arsenais.

 

Vamos ao campo

e não os vemos ao nosso lado,

no plantio.

Mas ao tempo da colheita

lá estão

e acabam por nos roubar

até o último grão de trigo.

Dizem-nos que de nós emana o poder

mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso

defender nossos lares

mas se nos rebelamos contra a opressão

é sobre nós que marcham os soldados.

 

E por temor eu me calo,

por temor aceito a condição

de falso democrata

e rotulo meus gestos

com a palavra liberdade,

procurando, num sorriso,

esconder minha dor

diante de meus superiores.

Mas dentro de mim,

com a potência de um milhão de vozes,

o coração grita – MENTIRA!

 

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