"Vivíamos abaixo da linha da miséria". Essa declaração me impactou. Primeira constatação: que o ponto que define a miséria individual não é um ponto, mas uma sucessão de pontos. Alinhados, fazem a linha. Sob ela fica muita gente, muita gente mesmo.
Estávamos em uma aula sobre teoria do objeto. Segunda constatação: é, existem estudos aprofundados sobre objetos, sejam eles quais forem.
Nesse dia em que ouvi a frase tínhamos de levar um objeto da infância e fazer a descrição do mesmo em várias abordagens, como o formato, material que fora confeccionado e modo de produção, por exemplo. Aí, apresentávamos a dimensão simbólica em nossas vidas.
Quando chegou a vez de uma colega, uma moça lá pela casa dos trinta anos, ela disse que não tinha nada para mostrar. Nunca tivera brinquedos ou qualquer outra coisa que pudesse ter sido guardada como lembrança física da infância. Vivia no interior do estado com um pai severo, uma irmã e um irmão mais novos que ela.
Mostrou então, uma daquelas imagens em miniatura de uma santa envolta por uma moldura de resina pintada na cor prata que achara na rua ao chegar em Porto Alegre quando a mãe, segundo ela, teve a coragem de enfrentar o pai e resgatou os três filhos. Aí, a partir dos meus nove anos, a vida melhorou, disse a colega.
Eu e os outros ouvintes não tivemos a coragem de perguntar nada. O relato e a entonação da voz, embargada de tristeza, nos fizeram cúmplices, ainda que involuntários, da intimidade de uma vida.
Ela contou muitas coisas com aquela história. A ausência do objeto revelou um mundo que, infelizmente, ainda existe. Há crianças em vários lugares sofrendo as atrocidades das guerras que vemos na televisão. Há os “invisíveis” nas ruas e campos do nosso estado sendo atacados pela insensibilidade de alguns e a indiferença de muitos.
A miséria não escolhe qual espaço geográfico ocupar. São os adultos que, por suas ações e omissões políticas, econômicas e pessoais provocam as dores que serão levadas por toda a vida. O que podemos fazer? Como reagir?
Talvez, agindo conforme Beth Carvalho cantou, magistralmente (trecho):
Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria.
Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucada brutalmente.
Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda a pobre inocência dessa gente.