o inverno

O frio nas montanhas sem gelo

Chegamos, enfim, ao inverno. Com ele, nos dividimos: nas conversas de elevador, na mesa do bar, no ônibus, agrupamo-nos segundo o critério de gostar ou não gostar da estação. As variações de argumentos vão desde o andar elegante e bem vestido ao horror de ter crianças ranhentas em casa.

Tudo é uma questão de sensibilidade e percepção.

Sabemos, também, que o inverno brasileiro, além de ocorrer de maneiras muito diferentes em todo o território nacional, é bastante distinto do que se vê em outros continentes. O discurso cinematográfico da montanha com o pico coberto de neve não nos pertence. “Que pena”, diriam uns. “Ainda bem”, os outros.

Machado de Assis, nosso grande escritor brasileiro, também falou sobre a estação. Não se posicionou a favor, nem contra,mas fez um belíssimo retrato do inverno brasileiro, período em que o “Gelo não cobre o dorso das montanhas”. Aqui, os meses de frio são ambíguos; coexistem a névoa, o sol, o vento frio e a orquestra dos pássaros no mato.

(Na minha opinião, querido escritor, faltou dizer que coexistem altas e baixas temperaturas no mesmo dia e que isso acaba com a minha garganta.)

Enfim, gostando ou não, teremos três meses de inverno pela frente, com casacos bonitos, caixas de lenços descartáveis, vinho, antigripais, lareira e espirros.

De todo modo, os dias são sempre melhores quando há boas leituras para fazer.

Fiquem com o poema de Machado de Assis.

 

 

Manhã de Inverno

Coroada de névoas, surge a aurora

Por detrás das montanhas do oriente;

Vê-se um resto de sono e de preguiça,

Nos olhos da fantástica indolente.

 

Névoas enchem de um lado e de outro os morros

Tristes como sinceras sepulturas,

Essas que têm por simples ornamento

Puras capelas, lágrimas mais puras.

 

A custo rompe o sol; a custo invade

O espaço todo branco; e a luz brilhante

Fulge através do espesso nevoeiro,

Como através de um véu fulge o diamante.

 

Vento frio, mas brando, agita as folhas

Das laranjeiras úmidas da chuva;

Erma de flores, curva a planta o colo,

E o chão recebe o pranto da viúva.

 

Gelo não cobre o dorso das montanhas,

Nem enche as folhas trêmulas a neve;

Galhardo moço, o inverno deste clima

Na verde palma a sua história escreve.

 

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço

As névoas da manhã; já pelos montes

Vão subindo as que encheram todo o vale;

Já se vão descobrindo os horizontes.

 

Sobe de todo o pano; eis aparece

Da natureza o esplêndido cenário;

Tudo ali preparou co’os sábios olhos

A suprema ciência do empresário.

 

Canta a orquestra dos pássaros no mato

A sinfonia alpestre, — a voz serena

Acordo os ecos tímidos do vale;

E a divina comédia invade a cena.

 

Machado de Assis, in 'Falenas'.

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