primeiro pecado

O comunista

Quando eu tinha dez anos de idade, minha irmã  e eu fomos internas, durante um ano, em um colégio de freiras de Porto Alegre.

Uma noite, quando estávamos nos preparando para deitar, a Madre Catarina, responsável pelo Internato, tocou sua sineta, o que significava que devíamos voar em sua direção.

Ela estava sentada em uma cadeira, no final do corredor largo em que se localizavam, de um lado e outro, nossos quartos. Nem bem nos acomodamos no chão, a sua volta, ela começou a falar, toda alvoroçada: "Meninas, temos de rezar um terço, porque, agora, não há guerras só lá do outro lado do mundo. Agora, a guerra está ali, em Cuba, que, como vocês sabem, foi tomada pelos comunistas".

Como meus conhecimentos de Geografia ainda eram muito parcos, naquela época, imaginei que Cuba ficasse ali pelas bandas de Viamão, ao lado do bairro Agronomia, onde se localizava o colégio. E voltei para meu quarto aterrorizada.

Antes de deitar, coloquei sob a coberta um abajur (que se escrevia abat-jour, em francês, naquele tempo) de ferro batido, pesado, que havia ganho da tia Alice. Aquilo foi o mais próximo de uma arma que pude encontrar, em meu quarto, para o caso de uma invasão comunista.

Levei um tempão para dormir e, lá pelas tantas, acordei com um ruído e percebi que havia alguém atrás da cortina que separava o quarto do corredor. Embora estivesse escuro, quando o intruso caminhou, pé ante pé, em direção a minha cama, deu para perceber que era um homem enorme, verde, de olhar ameaçador, e não tive dúvidas de que se tratava de um comunista.

Eu estava paralisada pelo medo, mas daí o comunista ficou de costas para mim e se inclinou para pegar um Menino Jesus de plástico fosforecente, que estava sobre a mesinha de cabeceira. Foi então que aproveitei para dar um "abajurzaço" em sua cabeça.

Ele despencou no chão, e eu corri para chamar a Zoila, minha vizinha de quarto, e mais duas colegas: "Gurias, venham me ajudar! Matei um comunista! Precisamos nos livrar do seu corpo antes que a Madre Catarina apareça!".

Cruzamos o corredor de ponta a ponta, arrastando uma colcha sobre a qual jazia o corpo do comunista, em direção ao incinerador de lixo. Deu um trabalho danado levantar aquele peso todo para jogá-lo no fogo, mas eu estava orgulhosa por ter livrado o mundo daquele inimigo detestável.

Quando a Madre Catarina tocou a sineta, para nos despertar, no dia seguinte, percebi que, na realidade, não tinha feito aquilo, mas que seria bem capaz de fazer.

Naquela manhã, fiquei um tempo imenso, debaixo do chuveiro, tentando interpretar aquele sonho e entender como aquela freira, que falava tanto em amor ao próximo, tinha sido capaz de me incutir tanto ódio.

E, logo depois das aulas, fui à capela do Colégio para confessar meu primeiro “pecado por pensamento”.

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