A ideologia do machismo não tem lado. O Seguinte: recomenda e reproduz o artigo da juíza Laura Rodrigues Benda, publicado originalmente no Justificando
Há pouco mais de um ano, viralizou na Internet a campanha #meuamigosecreto, por meio da qual as mulheres expuseram atitudes veladas de machismo travestidas de normalidade. Durante os dias em que os relatos foram publicados, um fenômeno interessante pôde ser observado: a grande maioria das denúncias formuladas por mulheres de esquerda tratavam da sua convivência – íntima ou em coletivos – com homens de esquerda. Desde então, é cada vez mais comum encontrar, em inúmeras plataformas, textos de feministas a respeito dos “esquerdomachos” ou “feministos”, como são jocosamente chamados por muitas de nós.
O machista compreende o mundo estritamente sob os signos do masculino e acredita que isso se confunde com o que é natural. Assim, mesmo o machista de esquerda, que é forjado nos discursos que combatem a desigualdade, acaba por reproduzir determinados comportamentos do patriarcado sem perceber que se trata de opressão. É por esse motivo que, mesmo em coletivos de esquerda, há homens que reproduzem “piadas” sexistas e outros que delas riem. Há outros, ainda, que não se esquecem de elogiar a companheira feminista por um texto sobre o tema, mas em qualquer outro assunto “de verdade” apenas se lembra de referenciar um homem. Caso ela ouse se manifestar, pode ser o caso de interrompê-la e brindá-la com um episódio de mansplaining[1].
Em grupo ou na convivência íntima, o machista de esquerda se sente à vontade para julgar se a reação das mulheres é ou não adequada (pois, caso não seja, pode ser um caso de mulher louca ou histérica[2]), assim como de avaliar se o próprio feminismo dela está de acordo com as estratégias que ele considere mais acertadas. Ao final, não hesita ainda em praticar slutshaming,tratando ou não do comportamento sexual da mulher.
Se o incômodo não é novo, acaba por ser um desafio tanto para os homens de esquerda – que precisam, urgentemente, repensar seu comportamento -, como, principalmente, para o movimento feminista, que, querendo afastar-se deste ranço, corre o risco de se deslocar das pautas igualitárias.
De fato, até os anos setenta, época em que o conceito de gênero passou a ser utilizado, todas as teorias feministas de destaque refletiam a influência da filosofia marxista. Isso significa que a questão de gênero era analisada sob a perspectiva da economia política, ainda que começasse a tratar de temas como o trabalho doméstico e a sexualidade. Na medida em que corria o século XX, entretanto, o abandono da perspectiva marxista foi um fenômeno correlato à própria desilusão geral com a política visionária. A muitas feministas, a partir da experiência stalinista, a visão de Marx parecia ter se travestido em totalitarismo opressivo, no qual a dominação marcava o tom dos relacionamentos sociais.
Nesse contexto, outras teorias feministas passaram a ser forjadas, para além do marxismo. Em primeiro lugar, o existencialismo de Simone de Beauvoir. Pouco depois, as teorias psicanalíticas do feminismo, assim como as pós-estruturalistas.
Isso fez com que houvesse uma mudança no centro de gravidade das políticas feministas. Anteriormente centradas na divisão sexual do trabalho, passaram a tratar de identidade e representação, causando uma espécie de subordinação de lutas sociais às lutas culturais, e das políticas de redistribuição às políticas de reconhecimento.
O que preocupa, nesse diagnóstico, é a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas. Ou seja, a mudança de foco gerou uma dupla contradição: ao mesmo tempo em que houve uma compreensão mais ampla do que significa justiça de gênero, parece que as lutas feministas não mais serviam para enriquecer a luta por igualdade distributiva.
Importa lembrar, porém, que a desigualdade de gênero fundamenta-se numa desigual distribuição dos bens, direitos e oportunidade, o que é baseado numa construção social que historicamente retirou a perspectiva das mulheres como referência para a construção dos consensos sociais. Essa realidade resultou num desnivelamento da situação das mulheres em relação aos homens, bem como numa situação de opressão, já que essas foram, ainda que com alguma resistência, praticamente anuladas dos processos de participação da sociedade.
Quando a desigualdade de gênero se justifica pela má distribuição, este se equipara a outra categoria de análise – a classe. Compreende-se, assim, como a inserção do gênero no modo de produção capitalista gera a apropriação das diferenças biológicas entre homens e mulheres, com o fim de dar sustentação à divisão fundamental entre trabalho “produtivo” pago e trabalho doméstico “reprodutivo” não pago, sendo este último designado como responsabilidade primária das mulheres.
Quando, entretanto, o sexismo se configura por meio da supervalorização de comportamentos e padrões culturais masculinos, e da conseqüente desvalorização dos comportamentos e padrões culturais associados e esperados das mulheres, estamos diante de uma espécie de violência simbólica, que, inserida no âmbito das construções culturais, institucionaliza-se e influencia todas as dimensões da vida em sociedade, inclusive o comportamento dos homens de esquerda.
O movimento feminista teve de lutar para desconstruir a injustiça econômica através da denúncia de que o gênero estrutura a divisão fundamental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivos, doméstico e não-assalariado, típicos de mulher. Além disso, o gênero também estrutura a divisão de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas por homens e o trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres. Como solução para isso, a transformação da economia política deveria eliminar a exploração, a marginalização e a privação específica do gênero, o que significa eliminar as diferenças e especificidades do gênero.
Se a questão do gênero envolvesse somente isso, estaria resolvida e os homens de esquerda poderiam dormir tranquilos. Contudo, gênero não é só uma diferenciação baseada na política econômica, mas também em padrões culturais. Isso é, existe uma particularidade em ser mulher que não deveria ser subsumida a um padrão cultural que privilegia as práticas, as formas de comunicação e interpretação masculinas.
Assim, para combater a injustiça cultural, homens e mulheres de esquerda também podem e devem lutar por uma desconstrução do androcentrismo (padrões culturais que privilegiam as características da masculinidade), o qual caminha junto com o sexismo cultural (a desvalorização e depreciação de coisas vistas como “femininas”, tomadas como emotivas e irracionais). É a única escolha para quem se diz combatente da desigualdade e da opressão.
Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de assuntos legislativos e institucionais da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia).
[1] O hábito que os homens têm de explicar às mulheres algo de maneira paternalista, mesmo que ela seja a pessoa que mais domina o assunto. Nesse link, há um vídeo bastante didático sobre o assunto: http://www.hypeness.com.br/2016/05/video-denuncia-e-ensina-de-maneira-didatica-o-que-e-mansplaining-e-como-isso-se-manifesta/
[2] Existe um termo que vem sendo difundido pelo movimento feminista que dá conta justamente desse fenômeno: Gaslighting. A origem da nomenclatura é o filme “Gaslight”(1944), no qual um homem, com o intuito de roubar a fortuna de sua esposa, faz com que ela seja tida como louca e, consequentemente, internada em um sanatório. Em suma, gaslighting é basicamente o processo de desestabilização de uma mulher, em qualquer nível ou circunstância, taxando-a de louca, exagerada, dramática, histérica (em http://justificando.cartacapital.com.br/2016/04/07/e-se-fossem-um-juiz-um-presidente-e-um-professor/).