Eu vinha chegando em casa e no saguão do prédio encontrei um vizinho que não via há meses. Trocamos cumprimentos rápidos e ficamos esperando o elevador. Ele estava carregando embaixo do braço um quadro emoldurado. Quando percebeu meu olhar, ergueu a pintura para que eu visse melhor. Parecia uma proposta recusada para pôster de filme-de-tubarão japonês, um leviatã pouco anatômico brigando com as próprias pinceladas.
– E aí? – disse ele. – O que achou?
– Que legal – disse eu. – É impressionante.
– Foi minha mulher quem fez, estou trazendo do moldureiro. É um retrato de Anikiok. Você sabe sobre Anikiok, claro.
Comigo não tem tempo ruim, de modo que respondi:
– Sim, tenho ouvido falar, mas do que se trata mesmo?…
– A fé encontra seus caminhos – disse ele. – E Anikiok se manifesta em nós prioritariamente através de emanações de fé. Claro que ela não atingiu você ainda. Normal. É só uma questão de tempo.
Com o rabo do olho vi o elevador vindo do 18 para o 17 e fui me preparando.
– Sem dúvida – respondi.
– Fatos: Anikiok é a baleia jupiteriana cujo influxo telepático é a única força responsável pela harmonia em nosso planeta. Ela nos comunica a sensação do bem, da verdade, da justiça.
– Beleza – respondi.
– Beleza também – disse ele. – Toda a arte legítima produzida pela humanidade é uma emanação de Anikiok. Mas, por que estou lhe dizendo isso?! Você não é um crente.
– Eu sou uma espécie de agnóstico – respondi.
– Você nega a existência de Anikiok?
– Não, não, é justamente o contrário. Digamos que eu não tenho dados para comprovar nem a existência nem a inexistência dela. É tudo muito novo ainda.
– Se você dedicasse algumas horas por dia a pensar em Anikiok facilmente aceitaria a existência dela – disse ele.
– É por isso mesmo que eu… – O elevador estava parado há horas no 15. – Que eu dedico sempre um pouquinho de tempo a todas as religiões. Já li a Bíblia, já consultei o Alcorão, li sobre Taoísmo, Budismo… Tudo ao mesmo tempo.
– A diferença – disse ele – é que essas são as falsas religiões, e a nossa é verdadeira.
– Não duvido – disse eu. – Parabéns.
– Você aceita Anikiok, então.
– Quem sou eu pra aceitar nada, amigo. Diga a Anikiok que estou receptivo às emanações telepáticas dela. Sou um homem mente-aberta.
– Mas acabou de dizer que é agnóstico. Um agnóstico é alguém que nega.
– Acho que me exprimi mal, essa palavra é meio arriscada – disse eu. Catorze… treze… doze… – Um agnóstico não nega a existência de um determinado ser. Ele apenas acha impossível provar que esse ser existe ou não. Para os crentes, a fé basta. Para nós, precisa algo mais que a fé.
– Você tem nível – disse ele. – Está convidado para vir ao nosso culto hoje à noite, para conversar com o pastor González.
– Tem pastor também? Eita, é o mundo todo.
– Vamos ter um culto e uma ceia. Não adotamos restrições allimentares. Tem peru, tênder, arroz de passas, farofa… Uísque e vinho também, se bem que você deve ser da linha cerveja. Pois vai ter cerveja e castanha assada.
– Eu sou um homem de linhas variadas – falei. Oito… nove… – Não tenho preconceito com religião, que dirá com bebida.
– Sobe lá em casa às 20 horas, – disse ele. – Eu moro no 2203.
Na subida do elevador ele me explicou detalhes do quadro: “O verde-limão exprime a amônia, que é para Anikiok o que o oxigênio é para nós”. E reforçou o convite: “Venha mesmo, você vai somar. Vai ter pessoas da área da cultura – meu cunhado é publicitário”.
E não é que eu fui? Tinha mesmo tudo, e muito mais. Houve um momento em que demos todos as mãos em torno da grande mesa redonda e cada um foi convidado a cerrar (não era fechar, era cerrar) os olhos e dizer em voz alta a mensagem que recebia de Anikiok. Como no momento eu era o primeiro à direita do anfitrião, tive que começar. Nem tive tempo de pegar os motes alheios pra dar uma glosada com diplomacia. Cerrei os olhos e disse a primeira coisa que me veio à cabeça, o título do conto submarino-venusiano de Roger Zelazny:
– The Doors of his Face… the Lamps of his Mouth.
Disse até bem, e num tom de voz que preservou as iniciais maiúsculas. Parece que impressionou, porque vários outros mandaram em inglês também, com múltiplos resultados.
A ceia rolou e nem precisei argumentar minhas posições. Os devotos de Anikiok estão mais ansiosos para falar do que para ouvir, e eu sou um Ouvidor Sênior desde os quinze anos.
Comi da castanha assada, do tênder, fui iniciado nos mistérios da telepatia vibracional enquanto degustava um Camembert de primeira com um Rufino tinto de boa safra.
Desci para meu apartamento depois da meia-noite, e mergulhei num sono empanzinado, agnóstico e jupiteriano, tudo ao mesmo tempo. E tive um vislumbre do que é ser um cetáceo num mar de amônia fervente, que nenhum sal de frutas é capaz de dissipar.
Braulio Tavares vive no Rio. É escritor, tradutor e cientista. Publicou por 13 anos no Jornal da Paraíba (entre março 2003/abril 2016), quando fechou a edição impressa. Para acompanhar sua imensa variedade de artigos, acesse seu blog Mundo Fantasmo.
A carica do colunista na capa do site é do Cado, caricaturista gaúcho.