Em 1986, capitaneado pelo ex-ministro Dilson Funaro, da Fazenda, o então presidente José Sarney lançou o Plano Cruzado, uma tentativa ousada de estabilizar a galopante inflação que corroía salários e estagnava a economia brasileira.
Entre muitas mudanças, como a do dinheiro – o Cruzado substituiu o Cruzeiro – e o congelamento de preços, aconteceu o aumento do consumo e parte da população saiu às ruas intitulando-se “fiscais do Sarney”.
Este aumento do consumo causou escassez de produtos nos mercados. Um deles – talvez o principal – foi o sumiço da carne bovina. Os criadores seguravam o boi no pasto alegando preços defasados, pagos pelos frigoríficos.
E lá veio o governo. De novo. Para evitar que faltasse filé mignon na mesa dos mais abastados e dos “novos ricos”, e guizado de segunda na casa dos assalariados, a Polícia Federal foi acionada para, até mesmo, confiscar os bois no campo, para abate.
Trombolho tecnológico
Foi por isso que conheci Carlos Wagner, o CW, um veterano e intrépido jornalista investigativo que trabalhou por 31 anos no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, como repórter especial.
Não lembro o mês, mas recordo que Wagner caiu na redação do Jornal do Povo, em Cachoeira do Sul, levado por um motorista e com um fotógrafo a tiracolo, numa época que, sem WhatsApp, as fotos eram transmitidas às redações por um trombolho tecnológico (?) chamado telefoto.
Meu chefe da época, o jornalista José Antônio Dios Vieira da Cunha, o Zeca, que conhecia e já havia trabalhado com o Wagner, mandou que eu “colasse” no repórter da capital para que tivéssemos a mesma matéria, também para o JP.
: Equipamento de telefoto era modernidade tecnológica para transmissão de fotografias
Peão armado
A missão era investigar uma denúncia que havia chegado à ZH dando conta que um grande criador de gado do interior de Cachoeira, para evitar o confisco do rebanho, estava transportando bois e vacas da sua propriedade para o Uruguai.
Lá fomos nós. Estrada de chão aqui, dobra ali, corredor acolá… Chegamos à porteira de uma bela fazenda. Carro parado, a primeira coisa que Wagner fez foi verificar as marcas dos pneus de caminhões. Profundas, portanto carregados. E recentes.
O carro e o fotógrafo ficaram do lado de fora da porteira da fazenda. Eu e Carlos Wagner subimos até a sede. Antes, ele orientou que o fotógrafo, com aquelas lentes superpotentes, registrasse tudo, mesmo à distância.
A uns 50 metros da casa principal fomos interpelados por um peão com uma arma de cano longo, provavelmente uma espingarda, que interrogou acerca da nossa presença e, “muito gentilmente”, nos botou a correr.
No meio dos pneus
De volta à cidade levei o repórter da capital até a empresa na qual o dono da fazenda, genro de um grande empreendedor, era o gerente. Obviamente que o homem se escondeu em meio aos pneus que eram vendidos no posto de gasolina do sogro.
Já no jornal, final de tarde-começo de noite, assisti ao trintão CW datilografar laudas e laudas de modo frenético em uma Olivetti, enquanto as fotos eram reveladas e transmitidas para a redação do jornal, em Porto Alegre.
Minha contribuição foi mínima, e a matéria que ele escreveu foi publicada também no JP, com algumas alterações feitas pelo Zeca. E com direito à manchete e foto de capa, o que rendeu muito assunto nos cafés e pelas esquinas da cidade interiorana.
Três décadas
Pois nesta terça-feira reencontrei Carlos Wagner, 30 anos depois daquela epopeia, em uma confortável casa de classe média-alta em um condomínio do bairro Cavalhada, em Porto Alegre. Missão: entrevistá-lo para o Seguinte:.
Me deparei com um alegre CW de bermudão preto, camiseta, chinelos, que extremamente receptivo me levou a um espaço da casa que carinhosamente chama de mini-redação. É onde passa maior a parte do tempo, trabalhando sem compromisso.
Wagner, hoje com 66 anos, no quarto casamento e quatro filhos, está aposentado há dois anos da Zero Hora, onde entrou em 1983 depois de trabalhar no extinto Coojornal e, pela primeira vez em uma redação, no O Interior, de Carazinho.
Natural de Santa Cruz do Sul, nascido em 21 de setembro de 1950, ele gosta de dizer que, antes de ser jornalista, é repórter. E abomina a palavra “aposentadoria” pois, mesmo vestindo pijamas de zebrinhas e pantufas, prefere seguir trabalhando.
Ele desembarcou em Porto Alegre com apenas 18 anos e chegou a iniciar estudos em duas faculdades, mas concluiu mesmo a de Jornalismo, na Universidade Federal do Rio Grande o Sul, a Ufrgs.
: Como gaúcho de vida simples, Wagner mantém o hábito do chimarrão e gosta de assar um bom churrasco
Laureado
Quantos prêmios na carreira, Wagner?
— Foram 36 prêmios.
E qual o mais importante, insisto no tema.
— Todos são importantes. Não tem um mais importante que o outro — diz, de forma modesta, o dono de pelo menos sete troféus do “Premio Esso”, a mais importante láurea do jornalismo brasileiro, e um dos 10 mais premiados jornalistas do país.
Dono de 17 livros publicados, quase a totalidade resultado das longas jornadas jornalísticas (cacofonia ou pleonasmo?) empreendidas pelo interior gaúcho e por este “brasilzão de meu Deus”, atualmente ele se dedica à produção de sua primeira obra de ficção.
— Me especializei na questão das migrações, dos conflitos agrários, e no crime organizado de fronteira — diz, sobre as principais temáticas da maioria de suas obras.
No blog lançado pouco tempo depois da aposentadoria (ops!), ele escreve textos (clique aqui) para orientar novos jornalistas, recém egressos das faculdades, sobre como escrever bem – com profundidade – uma reportagem. Especialidade dele.
— O “Histórias Mal Contadas” (nome do blog) tem um foco específico, que é ajudar os jovens repórteres a se posicionarem na profissão, saber quais as matérias que rendem mais, as que rendem menos — diz o “dinossauro” do jornalismo.
Além disso, CW tem viajado pelo interior, visitando redações de jornais gaúchos, com a finalidade de palestrar, contar sua experiência e falar sobre a necessidade do que ele chama de “modernizar conteúdo”.
Imprensa livre
Carlos Wagner é partidário da ideia de que o Brasil vive, atualmente, a liberdade de imprensa. Mas adverte:
— É menos de 40 anos de imprensa livre no Brasil. É liberdade até ali, mas nós vamos chegar lá.
Ele lembra que nos Estados Unidos existe liberdade de imprensa há pelo menos 300 anos, enquanto no Brasil há tão somente três décadas, depois da redemocratização do país, por volta de 1985.
Mesmo assim, segundo ele, praticam imprensa livre – de verdade – apenas as grandes corporações, dotadas de um quadro de profissionais do Direito sempre prontos para agir quando a situação exige.
Os demais, de pequeno e médio porte, se viram como dá. Até porque seus proprietários e profissionais geralmente vivem em cidades menores, onde todos se conhecem e a “cobrança” acontece na esquina ou no café ou bar mais próximo.
Jornal de papel
Outro pensamento que o veterano alimenta é que o jornal impresso, ou o jornal-papel, não vai “morrer” tão cedo. Pelo menos não tão rapidamente como apregoam os “profetas do apocalipse”.
Por mais que se multipliquem as plataformas que permitem à informação chegar em todos os quadrantes e com agilidade, Wagner acha que os pequenos jornais, que focarem no conteúdo desejado pelo público a sua volta, tendem a ter mais vida.
— Os donos (das pequenas e médias empresas) não têm como reduzir mais os custos. Há muito tempo eles vêm trabalhando sem gorduras, no osso. O que eles precisam fazer é bater na porta do seu leitor para saber o que esse leitor quer.
E continua:
— E é essa mudança de postura, a qualidade nos textos, com matérias aprofundadas, que vai fazer com que permaneçam vivos. Essa é a modernização que está sendo exigida: mudança de postura, melhoria do conteúdo — sentencia, enfático.
Uma boa agenda
Depois de ter percorrido quase todo o Brasil, conhecer cada buraco das estradas de chão do Rio Grande do Sul e cobrir a guerra civil em Angola, além de visitar inúmeros outros países, CW é categórico:
— Nada é mais importante que ter uma boa agenda de telefones. Onde teve conflito, guerra, ou estive perto ou estive lá, e garanto: tem que saber o número de telefone das pessoas. Porque na hora que o bicho pega tu tem que saber para quem ligar!
E não é só número dos telefones de autoridades. Isso inclui o taxista, o comerciante, e todos que podem ajudar o jornalista na hora do sufoco. É para socorrer quando é preciso socorrer e para dar a informação certa na hora certa.
Brasil de Bombachas
Em 1995 Carlos Wagner percorreu o Brasil, especialmente estados e regiões colonizadas por gaúchos, durante 60 dias, para produzir uma série publicada em ZH, o Brasil de Bombachas, retratando a saga destes colonizadores.
A primeira viagem resultou em um livro com o mesmo nome da série veiculada pela Zero Hora, um programa de rádio e um livro, igualmente com o mesmo nome. Em 2011, 16 anos depois, retratou a situação dos filhos daqueles colonizadores.
Aliás, a segunda, com a metade do tempo – cerca de 30 dias – e muito mais tecnologia à disposição, rendeu mais ainda: um blog, um programa de rádio, uma série para televisão, um livro e uma série de reportagens para jornal.
: Carlos Wagner diz que profusão de plataformas tira o couro dos repórtes atualmente
Tirando o couro
Como bom gaúcho que gosta de chimarrão, cerveja gelada e carne assada, Carlos Wagner brinca que, hoje, a profusão de plataformas de informação está “tirando o couro” dos repórteres.
— Antes a gente ia lá, entrevistava o cara, voltava para a redação, “batia” a matéria e ia pro boteco encher a cara. Hoje a gente trabalha 24 horas, e tanto isso é verdade que hoje os puteiros estão quebrados, faliram todos — fala, gargalhando, misturando a verdade com o bom humor que lhe é característico.
Fala, Wagner:
“Eu já conheci muita gente que virou repórter, mas nunca conheci um repórter que voltou a ser gente. A partir do momento em que a pessoa se torna repórter passa a ver as coisas sob outra ótica”
E os riscos?
— Sempre fui um cara que corri riscos, mas riscos calculados. Se tu vai fazer uma matéria “encaroçada”, e eu fiz muitas, como a das índias prostituídas na região de Tenente Portela, que acabou com 10 caras na cadeia… Uns safados que prostituíam meninas indígenas — conta, sobre os dissabores da profissão.
E vai além.
— Tu tem que saber como trabalhar. Tem que ter a estratégia para entrar, para fazer e para sair do lugar — ensina.
E volta o Carlos Wagner bem humorado ao contar uma situação que enfrentou, por conta dos riscos da profissão:
— Certa vez fiz uma matéria complicada, sobre conflito de terras. Daí o cara ligou para a redação…
E relata:
– Carlos Wagner?
– Sim, sou eu!
– Olha aqui, o cara: eu vou te processar, vou tirar todo o teu dinheiro e ainda vou te dar uns tiros!
– Na boa, cara… Lamento muito mas tu chegou tarde. A minha ex-mulher já me “pelou”, me ameaçou e só não me deu os tiros. Ainda…
Segundo CW, ambos caíram na risada e o assunto morreu nesse telefonema mesmo.
Boas lembranças
Carlos Wagner garante que o melhor prazer para um repórter é quando produz uma matéria, uma reportagem, que tem repercussão e é capaz de ajudar as pessoas. Neste sentido, cita pelo menos duas.
— Uma fiz junto com o Nilson Mariano (também jornalista de Zero Hora), chamada “Meninas Prostituídas”, e outra que gostei muito foi “País Bandido” em que descrevi os conflitos que acontecem na fronteira do Brasil com países como Paraguai, Bolívia, Colômbia… Principalmente onde existem as chamadas fronteiras secas.
Mais uma:
“As faculdades formam jornalistas, mas é o cotidiano da nossa profissão é que forma repórteres. É diferente ser repórter e ser jornalista”
Carlos Wagner:
– Revela que começou em um meio de comunicação fazendo a distribuição de jornais e que, depois, passou à produção de notícias.
– Seus primeiros trabalhos profissionais foram para o Coojornal, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre.
– Quatro anos depois foi levado para atuar no jornal O Interior, de Carazinho.
– Carlos Alberto Wagner – faz questão de ser chamado apenas por Carlos Wagner – iniciou em Zero Hora em 11 de março de 1983.
– Ele atuou sempre como repórter especial do jornal, produzindo reportagens para o jornal, rádio e televisão. Mais tarde também para a plataforma digital do grupo.
– Sua aposentadoria (ops, de novo!) foi em 23 de outubro de 2014, aos 64 anos.
Alguns dos livros:
– Monges Barbudos & O Massacre do Fundão (Mercado Aberto, 1981)
– Fernando Ferrari (Tchê, 1985)
– Cooperativismo: Milho (ARI, 1985) – os três escritos com André Pereira
– A Guerra dos Bugres: A saga da Nação Caingangue no Rio Grande do Sul (Tchê, 1986), com Humberto Andreatta e André Pereira
– A Saga do João Sem Terra (Vozes, 1989)
– Brasiguaios: Homens sem pátria (Vozes, 1990)
– O Brasil de Bombachas (Zero Hora, 1995)
– País Bandido: Crime tipo exportação (Zero Hora, 2003)
– Os Infiltrados: Eles eram os olhos e os ouvidos da ditadura (AGE, 2010), com Carlos Etchichury, Humberto Trezzi e Nilson Mariano.
– O Brasil de Bombachas – As novas fronteiras da saga gaúcha (Duetto/Rimoli Associados, 2011)
Participou das antologias:
– Arte da Reportagem (Scritta, 1996), organizado por Igor Fuser
– Repórteres (Senac/SP, 1997), organizado por Audálio Dantas, com o conto-reportagem Lições da Estrada
– Livro/CD-Rom Zero Hora – 45 Reportagens Que Fizeram História (RBS, 2009). Foi um dos entrevistados por alunos da Faculdade do Povo de São Paulo (Fapsp) para o livro Mestres da Reportagem (In House, 2012), organizado pela professora e jornalista Patrícia Paixão.
ATENÇÃO:
A partir de agora os textos de Carlos Wagner no seu blog “Histórias Mal Contadas” serão publicadas também pelo Seguinte:.
Segundo o site Coletiva.net:
“Ele sempre quis ser médico para poder conhecer e tratar pessoas. De repente pensou que não era a medicina que o levaria a “novos horizontes”. A profissão certa para Carlos Wagner seria o jornalismo, que o permitiria tratar, ao invés de uma pessoa de cada vez, como um médico, “uma cidade inteira de uma vez só”. E também por uma certa dose de “ego”, confessa. Mas entre decidir pelo jornalismo e colocar a ideia em prática, passaram-se alguns anos.”