sobre ovos de páscoa...

… e a raiz de um poema que não tem leão

Estava assistindo a uns vídeos com meu filho Augusto, quando ele me falou sobre o tal do Easter Egg.

Easter Egg? Ovo de páscoa?

E aí veio a explicação de que isso são referências ocultas que podem ser encontradas em filmes e jogos. 

Intertextualidade, no meu tempo.

Comentei com ele a questão: para poder identificar Easter Eggs é necessário conhecer muitos filmes e jogos. E puxei a brasa para meu assado: nos livros também funciona assim. Quanto mais se lê, mais se é capaz de encontrar referências a outras leituras.

Depois dessa conversa, voltei aos poemas que estava lendo, do escritor angolano Ondjaki. E encontrei este:

 

“intimidar o poema a ser raiz”

 

era um poema lateral aos sentidos.

ganhava formato ébrio

ao nem ser escrito.

longe dos pensamentos

imitava uma pedra

[aí as palavras drummondeavam].

longe das lógicas

com tendência vagabunda –

o poema driblava lados avessos

de noites

e animais

[aqui as sílabas manoelizam, barrentas].

mas uma estrela nunca brilha

tão solitária;

encarece-se também de luuandinar,

miar à couto,

esvair-se para guimarães…

era um poema carente de afectar-se

a ramos gracilianos.

assim alcançava

o estatuto

de raiz.

cheirado, emitia brilhos tímidos

– fosse um pirilampo.

 

Não posso dizer que são Easter Eggs, mas também são referências, claríssimas. Carlos Drummond, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos são autores brasileiros transformados em verbos, neste poema que chega até a raiz. Assumidamente, Ondjaki leu muitos desses autores e constituiu sua escrita poética mantendo uma forte relação com os escritores brasileiros.

No entanto, a via contrária é bem diferente. Pouco – ou nada – lê-se de autores africanos, mesmo os que tem o português como língua materna. Seja pelo problema do mercado editorial (os livros de autores africanos em português geralmente são editados em Portugal e custam a chegar ao Brasil), ou seja pela nossa vasta ignorância em relação à África, o fato é que, no Brasil, pouco temos conhecimento sobre a produção dos escritores africanos.

Além disso, há uma carga muito forte de estereótipos que reforçam o desinteresse: na África, pensa-se, há somente savana, leões, girafas e zebras. O próprio autor Ondjaki ironiza esse desconhecimento no seu romance Os transparentes: há um personagem brasileiro que chega a Luanda e passa perguntando o tempo todo onde fica a selva, ao mesmo tempo que impressiona-se com o tamanho da capital angolana. É motivo de riso para outros personagens.

Ondjaki tem uma vasta obra e livros belíssimos, passando pelos infantis, pelos romances e pela poesia. Vale a pena conhecer, assim como os outros autores moçambicanos, angolanos, guineenses que têm sido publicados aqui no país.

Estabelecer relações é muito produtivo, envolve afeto. Para isso, é preciso sempre ampliar as fontes de conhecimento e valorizar tudo a que se tem acesso. Desde um livro de literatura angolana, poemas de um autor brasileiro ou até mesmo um vídeo, assistido ao lado do seu filho.

Para colocar tudo junto num texto sobre ovos de páscoa e sobre a raiz de um poema que não tem leão.

 

 

 

 

 

 

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