Do centro de Glorinha ao ponto de destino são cerca de 12 quilômetros. Primeiro por asfalto, depois estrada de chão. Por fim, a pé! A trilha não é difícil. O problema é para quem não tem preparo físico ter que subir morro, pular cerca de arame farpado, se equilibrar à margem de barrancos com até 30 metros de altura. Ufa!
Mas vale a pena. A natureza é exuberante. No alto, só se ouve o barulho dos galhos das árvores embalados pelo vento, o canto de algumas aves e o som da água que corre em um riacho próximo. E o que é mais importante está ainda mais acima, uma nascente de água cristalina que fica encravada no Morro do Tigre.
Do alto, a um lado, se enxerga Glorinha. Para o outro, é preciso erguer os olhos para ver a vegetação nativa que cobre o morro. Dizem, os que habitam a região, que não há animais selvagens – apesar do nome do lugar! – e sequer cobras são encontradas na mata. Apenas aves. Mesmo assim, não são muitas.
Ao que importa!
Mas o que o Seguinte: foi fazer no meio do mato, num lugar chamado Beco do Tigre, em Glorinha?
Conhecer uma entidade que capta esta água que desce, fresquinha, do Morro do Tigre, trata, armazena, e distribui para famílias de proprietários rurais. A nascente fica em algum ponto muito próximo da divisa de Glorinha com Gravataí. Dizem que do outro lado do morro fica Morungava.
Tudo na associação e no processo de captação e distribuição da água potável é legalizado, com registro nos departamentos, autarquias e secretarias municipais, estaduais e federais, e devidamente licenciado pelos órgãos ambientais.
Desde o ano 2000
A Associação dos Pequenos Produtores Rurais e Moradores do Morro do Tigre e Vila Nova nasceu há 16 anos, de uma iniciativa capitaneada pelo ex-professor do Colégio Farroupilha, de Porto Alegre, José Arsênio Cagliare, já falecido.
Aliás, foi dele também a luta para que as propriedades rurais daquela região recebessem energia elétrica, campanha que empreendeu ainda na década de 1990 como recorda a viúva de Cagliare e atual presidente da associação, Cleci Zanotelli.
Ela é uma profissional de enfermagem, com formação superior e especialização em Acupuntura, e divide a semana entre Porto Alegre e Glorinha. De quinta a domingo fica no sítio adquirido há 32 anos e, de segunda a quarta-feira, geralmente, trabalha na capital.
: Cleci, profissional de enfermagem e acupunturista, preside a associação da água
Associados
— Esta é uma região com muitas vertentes, e a água que desce do morro é de alta potabilidade, com muito pouco resíduos — conta Cleci.
A ideia de fundar uma associação e desfrutar desta dádiva da natureza nasceu em um grupo que tinha representantes de 75 famílias daquela área rural. O início, de acordo com a presidente, foi por volta de 1998. Ou 1999. Ela não tem certeza.
No começo foi mais difícil devido à necessidade de atender exigências legais e ambientais. Até bem pouco tempo a água era distribuída sem um controle preciso sobre a quantidade efetivamente consumida em cada propriedade. Hoje, todos os beneficiados têm hidrômetros.
Cleci conta que atualmente são 101 os associados que recebem a água que desce do Morro do Tigre, número que não pode ser ampliado diante da capacidade da associação e por imposição legal.
— Da nascente que captamos, 20% da água tem que ficar na natureza, para abastecer o arroio que corre próximo — conta Cleci.
Estrutura
Desde a captação, onde os primeiros reservatórios fazem a decantação inicial, até o ponto mais distante de entrega da água potável, são cerca de 20 quilômetros de rede. A distribuição se dá pela gravidade. Ou seja: “pra baixo todo santo ajuda!”
No meio há uma mini-estação de tratamento onde é possível armazenar cerca de 28 mil litros, ou 28 metros cúbicos. É ali que a água que – aos olhos do leigo – já é pura, recebe tratamento de uma empresa terceirizada, uma ou duas vezes por mês, que faz a manutenção dos filtros e repõe os químicos empregados para eliminar eventuais impurezas.
Para verificar se o líquido essencial à vida está chegando nas condições ideais às casas dos produtores ou, simplesmente, moradores da região, é feito um rodízio entre os associados para verificação diária dos níveis de cloro e pH da água.
: Mini-estação foi montada para armazenar e tratar a água distribuída aos associados
Água cortada
Para ter direito à água da associação, a propriedade não pode ter um consumo superior a 30 metros cúbicos por mês, mais de três meses de forma consecutiva. Se infringir esta regra, o dono da casa vai receber uma visita que vai alertá-lo para a necessidade de economizar.
— Se o consumo não for regularizado, ele pode ter até mesmo suspenso o fornecimento da água — explica a presidente Cleci.]
Para evitar os excessos é que, quanto mais a família consome, mais salgada fica a conta no final do mês. A taxa mínima cobrada atualmente é de R$ 26,40 para consumo de até 15 metros cúbicos.
De 15 a 20 metros cúbicos, a associação cobra uma taxa de R$ 5,00 por metro excedente. De 20 a 25 metros cúbicos, todo o excesso passa a valer R$ 10,00 por metro, e de 25 a 30 metros cúbicos de consumo, todo o excesso será cobrado à razão de R$ 15,00 por metro cúbico.
Dinheiro escasso
Mesmo assim, Cleci Zanotelli conta que a receita da associação é baixa, na faixa dos R$ 2,5 mil mensais, mal dá para pagar as despesas.
— Dessa receita que só se realiza se todos pagarem certinho, a associação tem que pagar a energia que usa, a empresa que faz o tratamento, um contador, um leiturista… Quer dizer, não sobra quase nada.
A presidente destaca que a associação não recebe ajuda ou verba financeira de nenhuma entidade, publica ou privada, e que o trabalho de todos os integrantes da diretoria não é remunerado.
— Todos trabalham como colaboradores, voluntários — pontua.
Sede emprestada
Atualmente a Associação dos Pequenos Produtores Rurais e Moradores do Morro do Tigre e Vila Nova tem sede no prédio da Escola Municipal Madre Ana Vagner, que está desativada. E não tem planos de ampliar o número de associados porque tem a limitação da água disponível e que pode distribuir.
Sem contar que o volume captado no Morro do Tigre nem sempre é o mesmo, segundo o secretário da associação, Gildo da Silva Ferreira.
— No período do inverno não tem problema, a água é farta. Mas no verão fica bem escassa e como o consumo aumenta por causa do calor, as vezes até falta água no final de semana que é quando as pessoas mais usam — conta.
: Gildo diz que vida melhorou depois que teve água portável dentro de casa
Mecânico
Gildo é um mecânico aposentado que mora com a família à beira de uma estrada de chão batido que leva ao morro. Atualmente são raros os consertos que faz na sua oficina. Ele se dedica mais ao cultivo da horta e criação de alguns animais para sustento próprio.
Nascido (há 54 anos) e criado em Morungava, é um dos que têm água potável para saciar a sede, cozer alimentos, para a higiene pessoal, lavar a louça…
— Com a água encanada e com qualidade ficou tudo melhor — diz.
Preservação
Para a presidente Cleci, o que a associação faz ao captar e distribuir água para uma centena de famílias é utilizar o que a natureza oferece de forma racional e responsável.
— Cuidando para fazer a coisa certa, tratando de preservar a natureza, é possível tirar proveito do que a própria natureza nos oferece — diz ela.
Que pontua:
— Nossa associação também está envolvida em outras questões, como a educação. E isso faz parte de um processo de educação, de dizer às pessoas que é preciso consumir a água de forma correta, sem exageros, para que não venha a faltar mais adiante.
Para encerar, antes de botar o pé na estrada de volta à redação, em Gravataí, o Seguinte: provou da água que vem do Morro do Tigre até a casa de Gildo Ferreira. Um copo com água fresca foi suficiente para saciar a sede. E para arrancar um veredito: Aprovada!
O que é pH
A sigla pH significa potencial hidrogeniônico (quantidade de prótons H+), que indica a acidez, neutralidade ou alcalinidade de uma solução aquosa.
Você repórter
Esta pauta foi sugerida por Sérgio Cardoso, ambientalista, geólogo e coordenador técnico do projeto Rio Limpo, da Associação de Preservação da Natureza – Vale do Gravataí (APN-VG). Se você também tem uma sugestão de reportagem, envie e-mail para silvestre@seguinte.inf.br.