“A nossa indignação é uma mosca sem asas
Não ultrapassa a janela de nossas casas.”
(Indignação, Skank)
Numa aula de Língua Portuguesa para alunos do Ensino Médio, certa vez, trabalhei com esta música do grupo mineiro, na tentativa de fazer os alunos notar qual o sentido que produz a diferença entre a letra da música e sua melodia. A letra trata de indignação, de pessoas insatisfeitas. A melodia, ao invés disso, é suave, um ritmo leve, que em nada sugere agressividade ou insatisfação.
O debate foi bastante produtivo. A partir dele, pude conversar sobre conceitos de forma e conteúdo e sobre como isso é importante tanto na música, quanto na literatura e nas demais artes.
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Há três semanas, escrevi nesta coluna sobre a questão do quanto os professores são, na prática, tratados como profissionais de menor importância, cuja atuação, princípios e métodos são recorrentemente questionados por qualquer pessoa, diferentemente de outros profissionais.
Hoje, com reforma proposta pelo Governo Federal para o Ensino Médio, por meio de uma Medida Provisória, sem qualquer diálogo ou consulta a especialistas da área, a desvalorização dos profissionais da educação foi oficializada, institucionalizada como política de governo. A reforma prevê a possibilidade de que uma pessoa com “notório saber” pode lecionar, sem ser necessária a licenciatura.
Um engenheiro pode saber muito de cálculos, um advogado pode saber muito de Língua Portuguesa e um assíduo frequentador de academia pode saber muito sobre aparelhos de musculação. Conteúdo não lhes falta. E a forma de ensinar, como fica?
Todos sabemos da necessidade de reformular o sistema educacional no país, que tem falhas, sem dúvidas. O sistema penal brasileiro também precisa de mudanças. E é possibilitando a qualquer pessoa que tenha notório saber em julgamentos (da vida alheia, por exemplo) que se melhoraria o sistema?
Os especialistas e, principalmente, os envolvidos na comunidade escolar – alunos, pais, professores – precisam ser ouvidos. Não é possível que se proponha uma reforma no Ensino Médio sem que os afetados por essa reforma opinem.
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Cogitou-se também que as disciplinas de artes e de educação física não seriam mais obrigatórias. Depois, a questão foi desmentida: mero engano no texto, disseram.
Mesmo assim, li muitos comentários estarrecedores sobre o quanto a arte de recortar papeizinhos é desnecessária. Eu digo que se a disciplina de Artes não fosse “tapa-furo” de carga horária, se fossem contratados os professores realmente formados na área, a situação seria bem diferente. A própria reforma, portanto, se contradiz.
A arte nos educa a inverter o olhar, a perceber que, muitas vezes, existe uma diferença entre o conteúdo de uma obra e sua forma, como na música do Skank, e que isso pode produzir uma imensa ironia. Que os alunos desenvolvam essa percepção é fundamental para todas as outras disciplinas e para toda a vida. Inclusive para perceber que há uma diferença abissal entre a forma de uma Medida Provisória imposta sem diálogo e seu conteúdo que pretende ser uma melhoria nas relações educacionais.
Não se faz educação sem diálogo. Nesse caso, a diferença entre a forma e conteúdo tem, sim, um sentido e um objetivo bastante peculiar. É preciso estar atento.
E a indignação precisa ser uma mosca com asas, que ultrapasse as janelas das casas e dos computadores.