Depois de meses vendo diariamente a cara de deputados, senadores, juízes, promotores, policiais e jornalistas com prontuários conhecidos, me vi pensando na dignidade de certos criminosos. Nas tragédias gregas e em Shakespeare, em meio aos piores banhos de sangue, motivados muitas vezes pelas ambições mais sórdidas, as pessoas não perdem a compostura, digamos. Elas são canalhas, sim, mas não são bufões – ou assim me lembro, porque li a maior parte dessas peças na adolescência. A exceção, segundo minha memória inconfiável, é Antônio e Cleópatra. Há um traço claro de bufonaria nos protagonistas. Mesmo assim, eles se matam com coragem, o que de um certo modo os redime.
N’O Chefão, Michael Corleone espera sua mãe morrer pra mandar matar o irmão traidor. Mas trata-se de uma decisão amarga – e vemos um Michael deprimido, fechado, solitário numa sala quase escura. Seu ato pode ser interpretado como trágico, no sentido dos dramaturgos gregos: um homem num beco sem saída, nas mãos dos deuses ou do destino. A consequência do ato é letal – e não dá pra imaginar que Michael Corleone não soubesse disso.
Penso então nos criminosos brasileiros.
É provável que algum leitor estrile comigo por usar uma palavra forte assim ao falar de políticos, policiais, juízes, promotores e jornalistas. No Brasil a palavra criminoso é associada, diria que automaticamente, ao assaltante ou ao pessoal do tráfico de drogas. Não é que eu ache injusto que o assaltante ou traficante seja taxado de criminoso. Acho injusto que um ministro ou chanceler, com vários processos por corrupção barrados por seus amiguinhos na Justiça, não seja chamado de criminoso e continue sua carreira escusa, faturando ao amparo do cargo que ocupa e recebendo elogios de seus amiguinhos na imprensa. Na verdade, uma autoridade governamental pode, apenas com um canetaço, jogar milhões de pessoas na mais profunda miséria, que é a forma mais fácil e rápida de aumentar a criminalidade miúda, porque a grande está com os bancos e demais conglomerados, e o bestalhão de classe média pensa que se trata de negócios. Daí eu me sinto muito à vontade pra usar a palavra criminoso – e como quem cospe.
Vamos simplificar: violou uma lei, é criminoso. Não posso chamar Michel Temer de criminoso, mesmo com ele atolado em denúncia de propinas, tramoias no porto de Santos e até espionagem para os gringos, porque nada disso foi parar num tribunal (caraca, como são tortuosos os caminhos da justiça) e ele não foi condenado. Mas no caso da violação de uma lei eleitoral, ele foi pego direitinho, tanto que está na geladeira por oito anos. Espero que não deem uma esticada na lei pra ele se tornar inocente.
Há algum resquício de dignidade no Temer? Basta olhar o penteado dele pra perceber o quanto é vaidoso. Mas como não há nada que justifique essa vaidade, sua aparência é caricata, coisa piorada pelo ar cerimonioso. Michel Temer poderia ser um dos alunos da Escolinha do Professor Raimundo, do Chico Anísio – poderia ser o aluno que sabe gramática mas não sabe dizer coisa com coisa. Esse aluno é figurinha fácil numa terra de bacharéis, não? Se fosse apenas a pose de um Bela Lugosi querendo se passar por Rodolfo Valentino, não mereceria um segundo olhar. O diabo é que ele se diz poeta, comichão parece que inata nos bacharéis. Sua senhora, bonita e recatada, que me desculpe, mas o cara não tem salvação.
Há bons poetas de aparência ridícula. Temer não teve essa sorte – a aparência ridícula se sobrepõe a uma mediocridade fulminante. Gozado, era de se esperar que os versos dele fossem alambicados – a vacuidade absoluta dita com palavras suntuosas em frases com vírgulas demais. Combinaria com perfeição com o penteado, os ternos escuros, a solenidade de mordomo. Mas não. Surpreendentemente os versos aliam a vacuidade de conteúdo com a vacuidade formal. Se vamos falar sério, não se pode dizer que ele é um poeta medíocre – ele está muito, mas muito abaixo disso. Não se pode falar em poeta, no máximo de escrevinhador. Já vi listas da feira mais emocionantes que os versos dele, sem falar que com sentido.
Como uma pessoa se justifica ao promover uma política em que os pobres ficam mais pobres e os ricos mais ricos? Como não dá pra dizer que Temer não sabe o que está fazendo, me pergunto: o que sente? Alguns dos seus recuos não têm nada a ver com algum resquício de consciência, claro, mas apenas pra ver se os índices de impopularidade não continuam aumentando. É patético, o sujeito está aí pra foder nossa vida e sonha em ser querido.
Se víssemos Michel Temer numa sala escura, com a cara fechada, com certeza não pensaríamos na dor e no ódio de Michael Corleone depois de ter tomado uma decisão atroz. Não pensaríamos nada. Ou, no máximo, que faltou Viagra na farmácia. Ou que ele está dodói porque demora sua entrada na Academia Brasileira de Letras.
Acho que veríamos em Temer a mesma vacuidade que se vê em seus versos. Nenhuma ideia, nem um sentimento: só palavras sem sal e sem pimenta, como que sorteadas. Ou talvez, bem escondido, o usurário recontando suas moedas.
Seria bem diferente com Eduardo Cunha. Veríamos um personagem de Scorsese remoendo vingança, Joe Pesci a ponto de ter um troço. É interessante comparar Coppola e Scorsese. Em Coppola os criminosos têm uma espécie de nobreza – por suas famílias e vizinhos pobres eles tomam o lugar do Estado. Em Scorsese os criminosos estão entregues à ganância sem limites como se espera em qualquer mercado livre de controle – a violência não é apenas um meio de alcançar seus objetivos, alguns têm prazer nela. Sei não, mas me parece que a total falta de romantismo de Scorsese está mais próxima da realidade.
Também seria diferente com Cristovam Buarque. Ele vendeu o que lhe restava de dignidade por um cargo em Paris e precisa, a todo instante, provar a si mesmo que não se vendeu. O que deve doer mais é a consciência de que se vendeu barato demais.
Agora lembremos de Getúlio Vargas. Estou lendo a biografia dele escrita por Lira Neto. Vargas era um salafrário, naturalmente. A diferença é que tinha um projeto para o país, ao contrário da elite brasileira, que prefere entregar tudo aos gringos em troca de uma propina razoável, desde que não tenha de trabalhar. Quando foi encurralado, Vargas se matou, num gesto de honra e coragem. Pode-se esperar um gesto desses de um Fernando Henrique, de um Serra, de um Temer? Eles são mandaletes dos oligarcas. Achamos que ganham ou ganharam muito porque somos uns pobres diabos, essa gente que no restaurante lê o cardápio de trás pra frente, do preço para o prato. Pros oligarcas essa bufunfa equivale à festinha que fazem na cabeça do cachorro que é chamado com um assobio.
Entendem o que estou dizendo? Temer se meteu numa tragédia, ajudou a criá-la, vai fazer o que puder pra aumentá-la, mas finge que não a vê ou simplesmente não se importa. A dor das vítimas não vai tirar o sono dele.
Ernani Ssó é escritor, vive em Porto Alegre. Colabora com os sites Coletiva Net e Sul21, e virou colaborador fixo do Seguinte: