Como os mascarados desmascaram o Brasil do “mais um direito a menos”. O Seguinte: recomenda a sempre genial coluna de Eliane Brum para o El País.
Os black blocs, que apanham tanto de tantos lados, podem ser uma chave para compreender esse momento tão complexo do Brasil. Não apenas pelo que são, muito pelos discursos sobre o que são. Ao quebrarem patrimônio material como forma de protesto e serem transformados numa espécie de inimigos públicos, aponta-se onde está o valor e também a disputa. Enquanto a destruição dos corpos de manifestantes pela Polícia Militar é naturalizada, a dos bens é criminalizada. Reafirma-se, mais um vez, que os corpos podem ser arruinados, já que o importante é manter o patrimônio, em especial o dos bancos e grandes empresas, intacto. São também os corpos que sofrerão o impacto do projeto do governo que não foi eleito. Estes, que poderão ser ainda mais exauridos pelas mudanças nas regras do trabalho e também nas da aposentadoria. São os corpos os atingidos pelas reformas anunciadas como uma necessidade para não “quebrar o país”. Ao subverter o objeto direto do verbo “quebrar”, quebrando o que não pode ser quebrado, os mascarados desmascaram o projeto que pode ser chamado de “mais um direito a menos”.
É possível discordar totalmente da tática black bloc, mas isso não nos desobriga de escutar o que ela diz. E o que ela diz menos sobre eles, mais sobre o país neste momento em que os mascarados voltam aos protestos de rua. Tudo indica que não passam de duas dezenas os que se mascaram e quebram vidraças hoje em São Paulo, porque nem todo aquele que usa uma máscara é de fato um adepto da tática black bloc. Mas esse punhado de mascarados foi convertido num fantasma a assombrar o imaginário das diversas forças que disputam esse momento.
Desde que as manifestações se tornaram pelo “Fora, Temer!” e pelas “Diretas Já!”, elas multiplicaram-se. Em 4 de Setembro, cerca de 100.000 manifestantes ocuparam a Avenida Paulista. Aos militantes ligados a partidos de esquerda e movimentos sociais somaram-se manifestantes avulsos. Na semana passada, houve protestos menos numerosos em que predominavam jovens, no último domingo (11/9) a manifestação ganhou contornos mais partidários e ligados a movimentos sociais tradicionais. São diferentes atores que se movem em diferentes protestos. Dilma Rousseff, a presidente deposta por impeachment, quase não é citada.
O “Fica Dilma!” afastava muita gente. Mesmo “pela democracia”, muitos sentiam-se incapazes de apoiar um governo que, entre outras traições às bases, cometeu a atrocidade de Belo Monte. Como já aconteceu nos protestos de junho de 2013, e também nos protestos contra a Copa, em 2014, a repressão da polícia tem sido violenta. E, seguindo o mesmo roteiro viciado, é justificada pelas autoridades – e por parte da imprensa – como resultado da ação dos manifestantes que usam a tática black bloc. De imediato a narrativa nas redes e a cobertura da imprensa são tomadas pela falsa oposição: a PM reage aos black blocs. Não fosse a violência de um, não haveria a do outro.
A falsificação é evidente, já que não deveriam ser forças em oposição. A PM deveria atuar nas manifestações para proteger os manifestantes – e não para quebrá-los. Deveria atuar nestas manifestações como atuou nos protestos contra a corrupção e pelo impeachment. Na manifestação "Fora, Temer" e "Diretas Já" do domingo, 4 de Setembro, os black blocs foram obrigados pelos organizadores a tirar as máscaras ou deixar a manifestação. O protesto ocorreu sem incidentes até o fim. O que aconteceu então? A PM começou a jogar bombas quando as pessoas tentavam entrar numa estação de metrô para voltar para suas casas. E, assim, provocou o que parte da imprensa chama de “confronto”. Ficou explícito ali que a PM age de forma ideológica: algumas manifestações precisam acabar bem, outras não. Como disse o filósofo Vladimir Safatle, “a polícia tem partido”.
Fica claro que as atuais manifestações precisam acabar mal. A interpretação mais evidente é a de que, enquanto a cobertura é precariamente concentrada nas bombas de gás e balas de borracha jogadas pela polícia não se discute – ou se discute pouco – o que está sendo reivindicado nos protestos. Para parte da grande imprensa, há cobertura quando há violência, ainda que a violência seja apresentada como um “confronto” entre PM e manifestantes e não como o que de fato é: forças de segurança do Estado atacando cidadãos que exercem seu direito constitucional de manifestação.
Um olho a menos: se a PM é despreparada, como pode andar armada?
Protestos “pacíficos” só receberam grande atenção nas manifestações amarelas. Se não dá para falar de violência, é preciso falar do conteúdo. Tem se tornado explícito que para parte da mídia não é interessante ressaltar o conteúdo dos atuais protestos. Se o conteúdo das manifestações pelo impeachment e “contra a corrupção” era amplamente discutido, seguidamente em tempo real nas TVs, as manifestações pelo “Fora Temer” e pelas “Diretas Já” têm o conteúdo obscurecido literal e simbolicamente pelas bombas de gás da PM. Tudo vira fumaça.
Se a PM, agindo ideologicamente, fabrica incidentes quando não há, é mais prudente fabricar incidentes quando há garotos mascarados quebrando vidraças de prédios. Joga bomba em todo mundo, até em quem está passando ou só tentando chegar em casa, e vira reação. Os que tentam vender uma imagem “neutra” reclamam da “incompetência” da PM, por “exagerar” e não saber agir apenas sobre os “vândalos”. Não é ilegalidade, não é ação ideológica, é despreparo da tropa. Despreparo é mais inocente. Mas despreparado pode andar armado a serviço do Estado?
Os black blocs são manipulados pelas forças que denunciam? É possível dizer que sim. Sua ação serviria para justificar a repressão das manifestações em cujo conteúdo não interessa jogar luz. Além de a violência virar a notícia, no lugar do conteúdo das reivindicações, ela também afasta das ruas aqueles que têm medo de apanhar da PM. É compreensível que muitos temam se manifestar se o risco é acabar com um olho a menos. É essa ideia que move organizadores de manifestações a impedir black blocs de agir – ou ao obrigá-los a tirar as máscaras. Ao não agirem no protesto de 4 de Setembro, em São Paulo, ficou evidente que a PM age violentamente mesmo quando não há ação de black blocs. E isso marcou um ponto.
Mas os black blocs são bem mais do que isso. Eles são também os mascarados que desmascaram.
Na semana passada, isso se tornou evidente por artigos na imprensa e nas redes que, com variações, davam aos protestos o recorte de uma oposição de classe entre os manifestantes e a PM. Como se fosse disso que se tratasse. De um lado, estudantes universitários mimados ou mesmo representantes de uma determinada elite. De outro, policiais pobres, pais de família, representantes das classes trabalhadoras.
Nesta manobra, a oposição seria dada não mais pelo protesto contra um projeto que não foi eleito e a reivindicação de eleições diretas, mas pela oposição entre dois grupos de rua, representando estratos sociais diferentes. Como se a PM e os manifestantes ocupassem o mesmo lugar simbólico nos protestos. Não ocupam nem podem ocupar. Ou ocupam apenas quando a corporação deixa de cumprir suas funções para se transformar numa força ideológica e armada, tornando-se o que não pode ser: manifestante.
Dito isso, é sempre importante conhecer quem são aqueles que protestam. Nas manifestações contra e pró impeachment, em São Paulo, apesar de os manifestantes defenderem posições distintas, pesquisas mostraram que o perfil socioeconômico era semelhante: em ambos os lados, quem estava nas ruas tinha maior renda e mais escolaridade do que a população geral. Nas atuais, ainda não há pesquisa para afirmar quem são os manifestantes pelo "Fora, Temer" e "Diretas Já", sem contar que os diferentes protestos têm diferentes públicos.
Os black blocs, atacados à direita e também à esquerda, são os que costumam trazer uma novidade à composição socioeconômica das manifestações. Para a esquerda tradicional, rechaçá-los deveria ser um motivo de constrangimento. Como black bloc não é um grupo, mas uma tática, é mais difícil afirmar quem são as pessoas que a usam nos protestos deste momento. Nas manifestações de 2013 e 2014, ocorridas em São Paulo, uma extensa pesquisa publicada no livro Mascarados (Geração Editorial) por Esther Solano, professora de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), mostrou que a maioria dos que a usavam eram jovens que viviam nas periferias. Em entrevista a esta coluna, a pesquisadora afirmou:
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– O estrato social de black blocs e policiais é muito parecido.
– Havia jovens de classe média que utilizaram a tática, mas foi algo esporádico. A maioria dos jovens que a utilizaram de forma contínua e formaram a linha de frente durante esses dois anos eram jovens das periferias de São Paulo, que trabalham desde cedo e estudam. Os que estavam no ensino superior eram tipicamente faculdades particulares. Nas narrativas destes jovens surgiam duas questões muito ligadas à classe:
1) muitos se definiam como a famosa classe C, que, com poder de consumo maior do que seus pais, pode estudar na universidade, mas ainda está exposta a múltiplas precariedades cotidianas;
2) por serem de periferia, a maioria tinha experiência direta com a violência policial nessas regiões, experiência que articula um discurso de raiva contra a corporação.
Esta relação com a polícia é fundamental para entender o Black Bloc no Brasil. A origem periférica deles é um elemento essencial, porque o jovem de classe média não tem esta experiência tão dura com a PM. Alguns jovens me diziam: ‘Professora, na periferia a gente não tem como enfrentar eles, porque lá é bala mesmo, e a imprensa não está nem aí. Mas aqui, no centro, a gente desconta a raiva e pode enfrentar os abusos deles porque a bala é de borracha e a imprensa está aqui’. Portanto, eu diria que o estrato social de black blocs e policiais é muito parecido.
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Nas manifestações pelo "Fora, Temer" e "Diretas Já", a hipótese de pesquisadores do tema é de que os black blocs hoje são mais jovens do que nos protestos de 2013 e 2014, possivelmente devido ao movimento secundarista formado na ocupação das escolas públicas, e seguem com origem periférica. Mas ainda não há pesquisa que permita comprovar essa formulação. Em São Paulo, nos anos de 2013 e 2014, aqueles que tinham atuação contínua, que usavam máscaras e depredavam fachadas de banco e de empresas, não passavam de 20. (Vale a pena lembrar que nem todo manifestante que usa máscara é adepto da tática black bloc, assim como nem todo manifestante que usa de violência é black bloc.) Numa observação apenas visual, é possível supor que o número de black blocs se mantenha bem semelhante nas atuais manifestações de São Paulo, embora não sejam os mesmos jovens dos anos anteriores.
Como 20 garotos – ou mesmo se forem algumas dezenas – movem uma fantasmagoria tão potente? Onde eles atingem, ou o que desmascaram?
Vale a pena reproduzir aqui o relato do professor de Antropologia da London School of Economics, David Graeber, um dos ativistas de Seattle nos anos 1990. Ele explica que a tática black bloc ganhou novos significados a partir da percepção de que, sem uma imprensa livre e atuante, as manifestações não violentas são ignoradas. E, portanto, seria necessário mudar de tática para se tornar visível.
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Estratégias gandhianas (desobedecer e resistir sem violência) não tem funcionado historicamente nos Estados Unidos. Na verdade, elas nunca funcionaram em escala massiva desde o movimento pelos direitos civis. Isso, porque os meios de comunicação nos EUA são constitutivamente incapazes de noticiar os atos de repressão policial como ‘violência’ (o movimento pelos direitos civis foi uma exceção porque muitos americanos não viam o sul como parte do mesmo país). Muitos dos jovens que formaram o famoso black bloc de Seattle eram na verdade ativistas ambientais que estiveram envolvidos em táticas de subir e se prender em árvores para impedir que fossem derrubadas e que operavam em princípios puramente gandhianos. Apenas para descobrirem em seguida que, nos Estados Unidos dos anos 1990, manifestantes não violentos podiam ser brutalizados, torturados e mesmo mortos sem qualquer objeção relevante da imprensa nacional. Assim, eles mudaram de tática.
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David Graeber é citado em um ótimo texto de Pablo Ortellado, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos poucos pesquisadores brasileiros dedicado a compreender quem são os manifestantes. Neste texto, posfácio de Mascarados, livro já comentado anteriormente, Ortellado contextualiza historicamente a tática e argumenta que os black blocs no Brasil, “transformados pela imprensa numa espécie de Al Kaeda”, merecem o respeito de serem tratados como atores políticos consequentes:
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O objetivo (da destruição seletiva de propriedade privada) era duplo: por um lado, resgatar a atenção dos meios de comunicação de massa; por outro, transmitir por meio dessa ação de destruição de propriedade uma mensagem de oposição à liberalização econômica e aos acordos de livre comércio. Ao contrário do que normalmente se pensa, essa ação não apenas não é violenta como é predominantemente simbólica. Ela deve ser entendida mais na interface da política com a arte do que da política com o crime. Isso porque a destruição de propriedade a que se dedica não busca causar dano econômico significativo, mas apenas demonstrar simbolicamente a insatisfação com o sistema econômico. Há obviamente uma ilegalidade no procedimento de destruir a vitrine de uma grande empresa, mas é justamente a conjugação de uma arriscada desobediência civil e a ineficácia em causar prejuízo econômico à empresa ou ao governo que confere a essa ação seu sentido expressivo ou estético, num entendimento ampliado. A destruição de propriedade sem outro propósito que o de demonstrar descontentamento simbolizava e apenas simbolizava a ojeriza aos efeitos sociais da liberalização econômica.
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Quando os black blocs de hoje, em São Paulo, quebram a fachada de um banco ou de uma empresa, obviamente não estão colocando em risco a existência do banco ou da empresa. Nem o banco nem a empresa vão falir por conta de uma vidraça quebrada. Mas a mensagem é clara. Quando confrontados com acontecimentos passados, episódios em que pequenos comércios e carros populares foram depredados, os black blocs costumavam dizer que “isso não é coisa de black bloc, mas de gente infiltrada”. Concorde ou não com a tática, eles apontam o dedo para o sistema político e econômico que acreditam promover a real violência, aquela que atinge os corpos e os mastiga na aridez da vida cotidiana.
É interessante voltar a prestar atenção na frase de Michel Temer, o presidente-naftalina, ao tentar minimizar as manifestações contra o seu governo: “As 40 pessoas que quebram carro?”. Fez bastante barulho “os 40”, em especial depois que um público estimado em 100.000 pessoas ocupou a Paulista na tentativa de mandá-lo embora do Planalto. Mas se prestou menos atenção no “quebram carro”, o que diz tanto sobre todos.
Não é acaso que a palavra “patrimônio” é corrente apenas no que ela expressa de material. O patrimônio imaterial é tratado como irrelevante – ou nem sequer é tratado como “patrimônio”. Qual é o patrimônio prioritário diz muito sobre o projeto de um governo – e de um país. O que se chama de Brasil foi fundado sobre a destruição dos corpos. Primeiro dos indígenas, depois dos negros. Estes, ao deixarem de ser mercadorias, foram relegados às periferias e às prisões, e até hoje são os que têm menos tudo e os que mais morrem de doença e de bala.
O governo Temer, em seu retrato literal de posse, é branco, é masculino, é arcaico. Temer é uma figura que parece deslocada no Brasil que passou por mudanças importantes desde a República Velha. É uma figura amarelada. Mas, se é, também não é. Ou não estaria ocupando o lugar de uma presidente democraticamente eleita. Nossa herança escravocrata e genocida segue bem atual porque jamais superada. Desde a “Abolição” nunca houve políticas públicas suficientes para superá-la – na maior parte do tempo, nem mesmo interesse em fazer algo a respeito. Os corpos, no Brasil, seguem valendo muito pouco. Seguem podendo ser torturados, violados e também exauridos. Bem mais o dos indígenas e o dos negros. Mas não só.
Assim, quando os blac blocks ressurgem e voltam a apontar para o patrimônio material e de imediato vozes se levantam para falar numa oposição de classe entre a PM que destrói os corpos e os mascarados que destroem fachadas de prédios e “carros”, há algo a ser estranhado. É interessante perceber também que, no mesmo momento, é lembrada repetidamente a morte do cinegrafista Santiago Andrade, causada por dois manifestantes no Rio, em 2013, durante um protesto com violenta repressão da polícia. Marca-se, assim, que “black blocs” destruíram uma vida humana.
É fundamental exigir justiça para Santiago, e os responsáveis, que já passaram 13 meses na prisão, devem ser julgados e punidos pelo ato que cometeram. Assim como é importante exigir justiça para todos aqueles que foram assassinados no Brasil e cuja morte segue impune. Isso posto, é preciso reconhecer que a destruição de vidas não é tática black bloc. Mas a violência contra os manifestantes é prática corriqueira da PM nos protestos – com ou sem black blocs. Exceto nas manifestações pelo impeachment.
O mais importante, porém, é compreender que uma instituição é diferente de um indivíduo – e, portanto, não são comparáveis. Quando a PM mata sistematicamente – e a do Brasil é uma das que mais mata no mundo e também uma das forças em que mais morrem policiais, comparada a outros países –, é o Estado que mata. Por isso grupos da sociedade civil têm afirmado que o genocídio da juventude negra é uma política de Estado no Brasil. No caso das manifestações, a PM, como representante das forças de segurança do Estado, não poderia fazer uma atuação seletiva, nem se tornar oposição a manifestantes, seja eles quem forem. Quando o faz, rompe a lei e torna-se uma ameaça ao Estado de Direito.
É significativo que a prioridade das forças de segurança, como já se tornou evidente, seja proteger as coisas e não os corpos. É também de corpos e de coisas que se trata a atual disputa. Há uma chance de que as manifestações pelo Fora Temer e Diretas Já cresçam com o avanço do projeto do atual governo. E o projeto que avança impacta profundamente sobre os corpos, ao mexer nas relações e na jornada de trabalho, nas aposentadorias e nos investimentos em saúde e educação. O discurso para quebrar mais os quebrados é o mesmo de sempre: sem isso, o país vai quebrar.
Quem quebra, como quebra e por que quebra é mais complexo do que se tenta fazer parecer. Os habituais quebrados acostumaram-se a ouvir, em diferentes períodos históricos, que é preciso quebrá-los mais para o país não quebrar. Nunca se fala, por exemplo, em políticas para quebrar um pouco a renda dos mais ricos e redistribuí-la de maneira que os quebrados de sempre se tornem um pouco menos quebrados. Não. A única saída é quebrar mais quem já é quebrado. Assim, um projeto que pertence ao campo da política se transforma num dogma propagado por gurus da economia no altar em que os sacrificados são sempre os mesmos. Neste caso específico, a escolha de um projeto não eleito e, portanto, sem legitimidade democrática para interferir tão profundamente na vida cotidiana dos brasileiros – sem legitimidade para impactar tão profundamente os corpos.
Quando os black blocs voltam ao palco da disputa, discordando ou não de sua tática, é preciso olhar para quais são as vidraças que quebram. E desconfiar de por que o rompimento destas vidraças têm causado tanto barulho e mobilizado tanta fumaça.
Não há ilusões nem bipolarização aqui. Se Dilma Rousseff prometia “nenhum direito a menos” na sua posse, foi no seu governo que começou o “mais um direito a menos” – e é sua a lei antiterrorismo que permite criminalizar manifestantes. Foi também Dilma Rousseff que começou a colocar em prática um projeto que não foi o eleito já no dia seguinte. Com Temer, agora, já são muito mais direitos a menos – e a subtração só faz crescer.
O que está em jogo neste momento é quantos direitos a menos os corpos dos quebrados conseguirão suportar sem reagir. E por quanto tempo boa parte dos brasileiros continuará a lamentar mais a destruição das coisas do que dos corpos.
Os black blocs têm apanhado à direita e também à esquerda. Tal unanimidade deve gerar, no mínimo, curiosidade. Há que se compreender que, concordando ou não com a tática, eles apontam para o impasse incontornável do Brasil, ontem e hoje: aquele que se dá entre os corpos e as coisas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Mais da genialidade de Eliane em seu site, ou siga-a no Twitter ou mande e-mail para ela.