Vou passando de táxi pela Rua do Catete e vejo ao longe um ajuntamento. Penso que foi acidente ou assalto, mas quando chego mais perto vejo o enorme ônibus de turismo parado em frente ao Museu da República. São os gringos, outra vez: trôpegos e felizes.
Tudo que para nós é banal serve para eles de fonte de deslumbramento ou espanto: um guri vendendo cones de papel cheios de amendoim torrado, garotas de 10 anos dançando a boquinha-da-garrafa na calçada de um botequim, bandeirolas juninas penduradas entre os postes elétricos, um mendigo exibindo a perna crivada de pinos metálicos.
Com os olhos muito abertos, e sempre cochichando uns com os outros, eles tentam perceber tudo, registrar tudo (o clique-clique inaudível das câmeras digitais), assimilar tudo que não pára de surgir à sua frente.
Como parecem desamparados: brancos como camarões sem casca, vestindo roupas sempre inadequadas, tentando passar despercebidos com artifícios como enormes bonés do Flamengo ou camisas da Seleção.
Quase todos têm mais de 60 anos e parecem estar, depois de uma existência de trabalho duro, desfrutando de uma hora-do-recreio em que pela primeira vez se dão conta de que existe um mundo além do trajeto entre a casa e o escritório. Por mais que os corpos estejam vacilantes, com as juntas emperradas, percebe-se nos seus rostos uma alegria infantil de quem na velhice consegue uma trégua momentânea na luta pela vida, um lazer prazeroso que não colide nem com a ética protestante nem com o espírito do capitalismo.
Às vezes andam muito próximos, ou pegados uns aos outros, como cegos que temem se perder na multidão. Seus rostos têm de vez em quando aquela expressão em-branco de que não apenas não entende o que vê, mas também desconhece a necessidade de entender algo; são como KasparHausers conduzidos pelo guia, que se responsabiliza por sua segurança entre a porta do ônibus e a porta do Museu.
Parecem tão inofensivos que chega me dá uma vontade de ir tomar conta deles, zelar para que voltem sãos e salvos ao hotel e ao aeroporto, ajudar na pechincha com os camelôs, conferir suas contas nos restaurantes. Quando os vejo é que me dou conta de como nós brasileiros somos espertos, somos ladinos, somos raposas.
Eles vêm, maravilham-se, gastam horrores, e vão embora. Adeus, gringos! Voltem de novo. Não cobraremos de vocês os malefícios dos seus governos ou das suas megacorporações, mesmo sabendo que devem a elas a facilidade com que suas carteiras se abrem.
Queremos manter o fluxo desses dólares que tanto ajudam a torrar nossos amendoins. Queremos também a chance de achar que somos parecidos uns com os outros, e que no futuro, quando a Viga Mestra do Sistema torar no meio e o circo vier abaixo, poderemos ser também generosos e dividir com vocês o chão do barraco, as sardinhas esquentadas na fogueira, e as histórias de fantasmas e espaçonaves que contaremos uns aos outros buscando aconchego, antes que a última noite desça sobre todos nós.
Braulio Tavares vive no Rio. É escritor, tradutor e cientista. Publicou por 13 anos no Jornal da Paraíba (entre 23 de março de 2003 até 10 de abril de 2016), quando fechou a edição impressa. Para ler outros artigos sobre palíndromos, acesse seu blog Mundo Fantasmo.