crônica e poesia

Sobre formigas, ventiladores, taças, terremotos e palavras

Eu teria muitos assuntos para comentar: as Olimpíadas, a política, a educação, será que chove?, a gestação de um bebê.

Enquanto pensava no que dizer, sustentando no ar uma xícara de café, dei-me conta de que havia formigas no açucareiro. E fiquei a olhá-las, por muito tempo, nessa desatenção.  

Dizem que, para ser um escritor, é preciso observar o mundo. Eu olho. Mas fixo minha atenção no que me rodeia da mesma forma como se tenta observar uma mosca grudada na hélice de um ventilador em movimento.

Olhar para dentro não é muito diferente. São muitos os mundos que me habitam. E sistematizá-los é tão pouco plausível quanto manter uma taça intacta sobre a estante num dia de terremoto.

Não consegui retornar ao pensamento linear, – o que vou escrever? -, e lembrei-me da voz de um excelente escritor sentenciando-me: não se pode ser escritor sem ser observador.

Voltei às formigas. Isso seria atenção ou desatenção?

Não tenho resposta. Tenho taças, terremotos, moscas e ventiladores. Formigas também. E, vez por outra, faço todos esses conviverem em alguma coisa que escrevo. Acho que nisso reside, não o segredo da escrita, mas o segredo da vida: fazer conviver todos os nossos eus, todos os nossos mundos.

Recorri às estantes para resolver o impasse da escrita. E encontrei-me, então, num poema de Manoel de Barros:

 

O apanhador de desperdícios

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

 

(Manoel de Barros)

 

Também eu, poeta, não sou da informática.

Também não gosto da palavra fatigada de informar.

Também uso a palavra para compor meus silêncios.

 

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