Gosto de pensar na poesia – e na Literatura, de forma geral – como um modo de transcender esse mundo literal, pragmático e rude em que vivemos. Talvez seja um super clichê, mas vejo a obra literária como uma janela. Não importa onde eu esteja, eu posso imaginar estar onde quiser; posso transgredir a linguagem metódica e formal do meu cotidiano de trabalho e posso pensar que há outras vidas além da minha: tudo isso por meio da escrita de um poema, por exemplo.
Essa foi a ideia para o meu livro chamado “Quarto sem janelas” e esse também foi o assunto da conversa que tive com alunos da Educação de Jovens e Adultos, da Escola Municipal Antônio Aires, na última semana. Foi uma experiência ímpar. Vi ali estudantes que, em razão da dura realidade que vivem, pensavam na experiência literária como mera inutilidade. Ao final do diálogo, porém, muitos foram à biblioteca procurar livros de poesia. Mesmo que um só deles tivesse ido, que apenas um tivesse sentido a necessidade de ler para ir além das paredes que os cercam, isso já seria um grande ganho. Eu me senti feliz.
Em homenagem a esses novos leitores de poesia, hoje esta coluna tem três das minhas janelas.
O poeta e o vento
Em dias de vento
Farfalham as folhas, os fios
Voam vestidos, vibram as vigas
Eu ensurdeço
-é demasiado som –
E me escondo para dentro.
(É inverno, sempre venta.)
Quando há vento em mim,
Fustigam-me as frases, os fatos
Desvelam-se as veias, flanam os fonemas
Eu agradeço
– abro a boca, o verso vai –
E eu me desvendo.
(É inverno, sempre venta.)
:
Risco
Há um risco
em meus olhos
não vejo o tronco das árvores,
somente os galhos
não vejo o poste,
somente a rua
não vejo a usina,
somente o rio.
Em meus olhos, há um risco
de olhar para o lado, para longe
para os galhos, para a rua, para o rio
há um risco
de me perder.
:
Lembrança
O que me fez lembrar de ti,
ao descer esta rua,
não foi o eco dos teus passos.
Tampouco a imagem de teu sorriso largo
refletida na vitrine de discos.
Nem mesmo a voz grave, como a tua,
que ouvi emergir da multidão.
O que me fez lembrar de ti,
nesta calçada,
não foi o vendedor de flores,
nem mesmo o casal de mãos entrelaçadas,
E menos ainda a porta em cuja frente
Me olhaste sem pudor.
O que me lançou ao rosto a tua lembrança
O que me fez recompor teu semblante
O que me obrigou a parar e a cerrar os olhos
foi o vento,
que desgrenhou meus cabelos.
Esse mesmo vento que dobrou a esquina
e, assim como tu,
Chegou
Moveu-me
E se foi.