Não poderia voltar ao alto Xingu sem dedicar umas páginas a esse estranho ritual do homem branco chamado futebol.
Existe em Pindorama um sem número de grupos, chamados times, que usam panos coloridos e são muito amados pelos seus parentes. Essas cores parecem ser o único traço que os diferencia entre si. Embora existam muitos grupos oponentes os embates são sempre entre dois, a cada vez, talvez por isso não teçam alianças. Soube que antigamente essa luta só acontecia nos dias sagrados, em que não se trabalha, enquanto o sol já se declina, mas devido à popularidade foi estendido a certos dias profanos, porém quando a noite já está alta.
O palco do embate é uma grande praça de guerra cercada. O lugar é espaçoso, barulhento e um pouco perigoso. Apesar disso um aviso: não leve seu tacape, por que ele pode ser, como foi com o meu, confiscado. O tacape nessa praça só pode ser usado por uns poucos, que não sei de que lado estão. O fato é que eles se prevalecem do tacape (curto e preto, mas sabe doer se acerta), mandam e apalpam a todos que entram, quando não descem o tacape nuns que eles não gostam. Embora tenha ido prestigiar o acontecimento tive que pagar o equivalente a umas três ou quatro galinhas para entrar.
Os guerreiros não se pintam para o embate, usam roupas rituais com as cores, já os seus parentes que assistem sim estão pintados. Os parentes dos guerreiros são separados em lados opostos e vigiados pelos brancos do tacape preto. Tudo é muito bem cuidado, por isso não entendo porque deixam crescer capim justamente no lugar principal, cujo tamanho é de uma aldeia pequena. Cada time tem um número grande de combatentes, mas brigam alguns apenas e com certo equilíbrio entre os dois lados (é difícil contá-los, eles correm, mas não são mais do que duas mãos de guerreiros para cada lado).
Os parentes sofrem bastante, pois lhes é vedado participar, nem ao menos uma simples pedrada é permitido, tampouco podem se enfrentar com os parentes do outro grupo. Se quiserem muito brigar só poderão fazer com os do tacape preto, coisa que não recomendo, pois além de serem muito organizados, unidos e vingativos, geralmente estão com seus cães. São eles que mandam em tudo, mas não fazem direito o trabalho, pois deixam entrar mulheres numa praça de guerra…
O mais difícil de entender é o motivo do embate. Correm como loucos atrás de uma bola clara de tamanho pouco menor que uma jaca, pouco maior que um côco. É proibido tocar nela com a mão, salvo dois protegidos do cacique da partida que ainda por cima não precisam correr como os outros. Mas o feitiço da bola não explica muito, pois são volúveis e não raro a abandonam. Por exemplo, às vezes a bola é chutada para longe e é substituída, sem cerimônia, por outra parecida, e igual ela os enfeitiça. Tampouco a defesa do território pode explicar o motivo da briga, pois quando eles cansam, descansam, mas depois voltam do lado oposto daquele que tão aguerridamente pareciam defender. E note bem, os parentes que assistem não trocam de lugar.
Cada guerreiro pode caçar e derrubar o oponente a patadas, mas observe: só se ele estiver de posse da bola, por isso ela me parece tão importante. Se um guerreiro caçar um adversário sem a presença por perto da dita bola, por mais bem dado e extraordinário que seja o coice (mesmo que não haja dúvidas que o oponente foi ao chão com sofrimento), ao invés de ter a bravura premiada, ele será excluído do embate. Depois de derrubado o oponente chega a vez da vingança: os ofendidos chutam a bola na direção duns voluntários que se enfileiram para receber uma bolada. Acreditem, apesar da pouca distância às vezes erram!
Creio que o mistério do objetivo final do ritual pode ser elucidado se levarmos em conta uma espécie de entrada, que não leva a lugar algum, situada ao fundo de cada praça. Essa mesma entrada simbólica, ou portal mágico, na falta de uma palavra melhor, é mal tapada por redes de pesca cujo sentido me escapa, deve ser enfeite. Pois bem, quando a bola passa por uns paus que a delimitam, ouve-se um grande ruído por toda a praça de guerra, sinal que algo grave aconteceu. Os parentes se excitam e soltam paus de fogo barulhentos e malcheirosos. O grito de guerra na ocasião é “gol”, mas, mais um paradoxo, serve para ambos combatentes.
Existe um cacique vestido de preto que manda nos dois grupos combatentes e é muito respeitado. Chama-se juiz, mas para não confundir com o profissional branco de mesmo nome, que outro indígena pesquisador já chamou de: “senhor que manda nos papéis” vou chamá-lo de: “senhor que manda através do apito”. Já os parentes que assistem ao embate não o respeitam em nada. Por pudor, e por acreditar que não acrescentaria nada ao nosso entendimento, não farei comentários sobre o conteúdo das ofensas. Creio que esse ataque verbal ao cacique “senhor que manda através do apito” possa ser um ritual de extravasamento da raiva dos tapuias e nos dar pistas sobre os verdadeiros motivos de tão apaixonado ritual.
Não assisti muitos embates, mas é bom assinalar que apesar de tão encarniçada rinha os ferimentos são superficiais e não existem mortos ao final. E quando acaba, acabou. A gente volta para casa sem comer nada, nem uma mísera cuia de cauim é servida, nada de carne, nem ao menos um passarinho magro assado se ganha.
Agradeço a Funai e a Fapesp pelos facões e espelhos que permitiram minha viagem de pesquisa ao povo branco do nascente.
Mario Corso vive em Porto Alegre, é psicanalista, publicou vários livros e é colaborador de Zero Hora. Para conhecer mais o seu trabalho, acesse o blog Psicanálise na Vida Cotidiana.