carta ao poeta

Não me salvo

Não te salves

(Mário Benedetti)

 

Não fiques imóvel à beira do caminho.

Não congeles a alegria

Não ames sem vontade

Não te salves agora

Nem nunca

Não te salves.

Não te enchas de calma

Não reserves do mundo

Apenas um canto tranquilo.

(…)

Mas se

Em que pese tudo

Não podes evitar

E congelas a alegria

E amas sem vontade

E te enches de calma

E reservas do mundo

Apenas um canto tranquilo

(…)

Então

Não fiques comigo.

 

 

Mário Benedetti é um escritor uruguaio, que consta no topo da minha lista de poetas preferidos. Hoje, 17 de maio, completam-se sete anos de sua partida. Além dos poemas, escreveu vários romances, dentre os quais destaco A Trégua, obra das mais tocantes.

Em 2014, tive a oportunidade de sentar-me à mesinha em que ele tomava seu café diariamente. Percorri as ruas de Montevidéu procurando esse lugar. A sensação de estar ali é indescritível. Transformei-a numa carta, que compartilho com vocês, caros leitores.

 

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Carta ao poeta Mário Benedetti

Não vamos falar de poesia hoje. Hoje não. Isso fazemos sempre, quando levo teus versos sobre o colo, no ônibus, e leio-te num país distante. E faz muito tempo que tua poesia me acompanha. 
Hoje, quando estou nesta cadeira onde te sentaste e onde possivelmente criaste teus melhores poemas, permito-me imaginar-te um pouco além das rimas. 
Convido-te a tomar um café. E por que não? Se o sol é o mesmo, se estamos sob o mesmo céu, se o vento que vem da Rambla e arrepia os nossos braços é exatamente igual? O tempo é apenas uma medida abstrata: não nos serve de muro. 
Pedi ao garçom uma medialuna rellena. Acho saboroso. Imagino que tu gostas também dos cafés cortados e das medialunas. Verdade? 
Estamos aqui, nesta mesa e nesta cadeira em que sempre te sentaste. O garçom disse-me que se lembra de ti, que vinhas sempre. Olho a cidade de Montevidéu, a Calle San José, através do mesmo vidro pelo qual passaram teus olhos, Mário. Mas não me interessam as pessoas, as pombas, os ônibus que passam nem tão velozes assim. O que me interessa é o teu reflexo que ficou no vidro, poeta. Teu reflexo que se confunde com o meu. Vês?
Os versos teus estão num livro sobre a mesa. Comprei-os na Calle 18 de Julio. E como eu fiz durante estes dias, eles fizeram um passeio de regresso para reencontrar sua origem. Foram em ti uma ideia; são hoje, em mim, tinta. Também eles, os versos, olham sua forma original refletida no vidro. Em teus olhos, Mário. 
Nós dois existimos, Benedetti, tu e eu, neste lugar, sob este teto. Tomamos um café com medialuna rellena. Que importa o tempo, que importa? 
Obrigada, poeta.
Obrigada, garçom, pelo café. 
Mário Benedetti esteve sentado aqui, neste lugar.
E eu também.

 

 

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Leio, em meu poeta favorito, que não devo ficar imóvel à beira do caminho. Escrever, posicionar-se é, de certa forma, ser atuante. Não me salvo. Em tempos difíceis, isso é mais do que necessário: é vital.

Minha homenagem a esse grande escritor.

 

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