pais e filhos

Basta agirmos como agem as crianças

Lauren, brincando na calçada de casa | Foto: NANDO ROCHA/Arquivo Pessoal

Era um fim de tarde de setembro, tempo agradável. Desci para brincar com a Lauren, ensaiando os primeiros passinhos em frente ao prédio. Entre tantos carros, pedestres, vizinhos, cachorros que passavam por nós e ela acenava, como uma pequena Miss saúda seu público, uma cena marcou a minha vida. Um senhor de idade avançada puxava o seu carrinho de papeleiro no entardecer de um domingo bonito, aquele clima que sugere confraternização familiar numa praça em torno do chimarrão. Expressão cansada, barba grande, roupa engraxada. Sabe-se lá se tem família. Se já o teve. Se tem filhos, se eles o reconhecem como pai. Se teve esposa, se conheceu seus pais.

A passos lentos, vinha a trote pela beira da estrada carregando um carrinho cheio. Assim que a Lauren a notou se aproximando, parou estática, e, na inocência genuína das crianças, acenou sorrindo. Aquele senhor de aspecto carrancudo, sisudo, maltratado pela vida, notando o aceno daquele bebê que interrompia o seu trajeto na calçada, parou o carrinho sorrindo e retribuiu o aceno. O que estimulou a Lauren a dar dois, três passinhos em sua direção, esboçando um novo sorriso e mais acenos. Debruçado sobre a guia do carrinho, aquele senhor parecia emocionado. Talvez lembrasse de um neto que nunca viu, talvez quisesse que a vida lhe tivesse dado um neto que nunca teve. Um filho que se perdeu, um sobrinho. Não sei. Mas notava à minha frente um homem rude com feições, agora, amenas. Sorria com os olhos marejados. Peguei a Lauren no colo e fui até ele. Havia cumplicidade no olhar. Ela se retraiu um pouco, mas olhava fixamente. Ele seguia sorrindo. Cheguei mais perto e o deixei tocar o dedo na bochecha da sua nova amiga. Ele ergueu o carrinho, abriu uma caixa de papelão e ofereceu um pedaço de plástico bolha seguido da frase “ó, um presente do titio. Eu sei que as crianças gostam de ouvir o barulhinho”. Agradeci, ela acenou, sorriu novamente e ele seguiu seu caminho.

Vai saber há quanto tempo ele não recebia um sorriso sincero. Essa foto é do exato momento em que o senhor partiu. Segurando o seu presente, ela seguia inerte olhando no horizonte o seu carrinho barulhento, seus passos cansados. Pudera o mundo ser afetivo e ingênuo como são as crianças. Pudera todas as relações ter essa reciprocidade de sintonia e afeto. Tive orgulho da minha filha. E gratidão àquele senhor que dedicou dois minutos do seu tempo escasso atrás de sobrevivência, para a minha pequena. O mundo ainda tem salvação. Basta agirmos como agem as crianças.

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