música

Demétrio Xavier, mapeador de culturas

Demétrio Xavier costuma se identificar assim: “Músico crioulo, formado em Ciências Sociais pela UFRGS”. Há bastante tempo eu ouvia falar dele como um conhecedor da obra musical e poética de Atahualpa Yupanqui. No meu caso, passara a seguir os passos do mestre argentino desde sua histórica apresentação na Califórnia da Canção Nativa, Uruguaiana, 1980, quando tive a oportunidade de conversar com ele – e mais tarde faria outras duas longas entrevistas, publicadas em Zero Hora. Demétrio, cheguei a ver duas ou três vezes em shows coletivos; era de fato um discípulo convincente, como comprovaria em 2005 no disco duplo O Pajador Perseguido, primeira e brilhante tradução para o português da obra-prima de Yupanqui. Há exatos dois anos, nos encontramos num sarau em homenagem a Mercedes Sosa e passamos a trocar e-mails, descobrindo outros pontos em comum além da admiração por dom Atahualpa.

Hoje sei que Demétrio Xavier conhece muito das culturas argentina e uruguaia, e da relação do Rio Grande do Sul com elas, objeto ininterrupto de suas pesquisas, leituras, viagens. Sei também que se apresenta bem menos do que gostaria e que tem um consistente trabalho próprio, só evidenciado em poucas ocasiões – como na Califórnia de 2009, vencida por sua música A Sanga do Pedro Lira, em parceria com Marco Aurélio Vasconcellos. Ainda mantendo a aura do pioneirismo, a Califórnia nasceu há 39 anos sob inspiração do Festival de Cosquín e toda a cosmogonia de um dos folclores mais ricos do Continente. Mais que o tango, aliás dele derivado, esse folclore de milongas, chamamés, zambas, vidalas, chacareras, é a verdadeira música nacional argentina. Dele emergiram Yupanqui e Mercedes, para citar apenas os dois maiores. A ele se “converte” outro grande, o ex-roqueiro Leon Gieco. Etc. e tal.

Pois o centro de minhas conversas com Demétrio tem sido a distância filosófica, ideológica, e ao fim qualitativa, entre essa música argentina, que pode ser ampliada para a uruguaia, e sua correspondente no RGS, a música regionalista gauchesca. Em nosso caso, nos anos 80, em meio a debates e até polêmicas, ainda havia o conceito livre de “nativismo”, mais próximo do folclore reflexivo e dinâmico dos vizinhos castelhanos – mas ele acabou praticamente dissolvido pelo tradicionalismo do grito e do gaitaço, cujos temas dominantes são o cavalo e o orgulho de ser gaúcho. Agora Demétrio propõe a união dos interessados em torno de outra via, deixando de lado as preocupações com o oficialismo tradicionalista. “Se temos tanta identificação histórica e cultural, por que não seguir o modelo platino de gauchismo popular?”, pergunta. “Deixemos o tradicionalismo em paz, em vez de polemizar com ele.”

Em meados dos anos 80, em um ensaio para o caderno Cultura, de Zero Hora, sob o título “Os aiatolás da tradição”, eu dizia que o acervo cultural do RGS vinha sendo cada vez mais apropriado pelas organizações tradicionalistas e que, em circunstâncias várias, os “nativistas” a que me refiro se sentiam quase constrangidos em assumir tal acervo sem adesão aos mesmos sinais exteriores – pilchas, vocabulário, fanfarronice, música tosca etc. Demétrio chega quase ao mesmo ponto: “Trago em mim um conceito estético e um discurso artístico. Minha referência ao rural é um fundamento. Sendo um artista urbano, que se expõe e expressa no meio e no ambiente urbanos, a definição desse rural é arquetípica, buscadora de uma identificação universal. E não sou o único.” Ele acredita na possibilidade de um novo trajeto para quem quer se manifestar por meio da música folclórica do RGS, incluindo a questão histórica.

Fala, Demétrio. “O gaúcho original era a figura mais libertária possível; seu descendente é um proletário rural apto a gerar um discurso de consciência social. Onde está esse discurso? Por que não fazemos arte de referência crioula com a mesma orientação com que a fizeram argentinos e uruguaios? Quantos cantores e folcloristas do Prata foram exilados durante as ditaduras de lá, enquanto a daqui incensava subliminarmente o tradicionalismo, e vice-versa? Sem discorrer sobre as razões históricas desse divórcio, o fato é que Yupanqui ou Zitarrosa equivalerão a Chico ou Caetano aqui, Aníbal Sampayo talvez se assemelhe a Vandré… e não aos que no RGS, no mesmo período, trabalhavam formas musicais parecidas. Acho que precisamos recuperar nossa música crioula por um rumo diferente da matriz tradicionalista. Mas sem brigar com ela, apenas  conhecendo a história e olhando para a frente.”       

 

Demétrio Xavier é apresentador do programa Cantos do Sul da Terra diariamente às 13h30 na FM Cultura 107.7

Juarez Fonseca vive em Porto Alegre. É crítico de música, colunista de Zero Hora. Está no Facebook.

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