Recomendamos o artigo de Marcio de Almeida Bueno, diretor-geral da Vanguarda Abolicionista, publicado pelo Olha Animal
Pois em uma simpática cidade do interior do Brasil, muito conhecida pela produção de suco de laranja, há uma empresa que se destaca por seu controle de qualidade. Para alguns pode parecer inusitado, até, mas a livre iniciativa e o empreendedorismo têm suas próprias regras. Senão, vejamos.
Todo lote de suco de laranja engarrafado, que saiu da linha de produção para ser colocado nos caminhões, só teve seu carimbo final após um cachorro ter levado um chute. Sim, eles dão um chute na bunda de um cachorro. Faz parte da política interna da empresa.
Ao leitor desavisado, desacostumado com as práticas da indústria, fica a ressalva de que esses cães são criados para isso. E tudo obedece às mais rígidas normas de saúde pública, bem-estar animal e aqueles protocolos com siglas em Inglês.
Claro que houve a grita da proteção animal, ONGs e redes sociais, então a diretoria da tal firma optou por terceirizar o serviço, recentemente. “Se adequar aos novos tempos, dar o braço a torcer”, sugeriu um coach deles. Sendo assim, passaram a pagar um determinado local que fica responsável por dar os devidos chutes nos respectivos cachorros, conforme a planilha indica. E, não faz muito, obtiveram até um selo de qualidade – Kick Dog Society – que é dado para aquele, e somente aquele, que executar o procedimento de chutagem canina fazendo uso de um calçado produzido de forma sustentável. Empresas similares já estão de olho nesse selo, mas aí é outro assunto.
E não é só isso.
Do outro lado da rua, bem em frente, está sua principal concorrente. É uma indústria de suco de laranja engarrafado com sabor, qualidade e índices nutricionais equivalentes. Até o rótulo de ambas se assemelha. Mas, segundo apurado, essa empresa B não chuta cachorros a cada lote despachado. Sua política interna difere-se exatamente nesse quesito, se compararmos com a empresa A.
Chamo de A e B pois o Departamento Jurídico da indústria A é conhecido por seus sapatos italianos e gravatas caras. Bem caras.
O fato é que quando essa informação começou a circular nas redes sociais – essa Torre de Babel dos dias de hoje, onde todos falam e fingem escutar os demais – alguns se preocuparam, mas muitos desdenharam. “Quem não concorda com chute em cachorro que não compre esse suco, mas não encha o saco de quem quer comprar”, resumiu uma internauta, sintetizando a opinião de grande parcela.
OK, sabemos que as pessoas são indiferentes, exceto nas semanas que antecedem o Natal, e que empatia é algo que se quer que o outro tenha com a gente, né?, já que nossa dor é sempre especial. “Mas poxa, pobres cãezinhos. Alguém tem que fazer alguma coisa”, muitos comentaram.
Só que o nó verdadeiro estava em pessoas que se diziam defensoras dos animais, amantes dos cachorros, que relativizaram a questão. “Eu tomo o suco A, sim, porque não tem nada a ver. Não tem nada de cachorro na bebida, então não tem problema. E eles não dão mais chutes, é uma empresa terceirizada que faz isso. Seus chatos!”, rebateu uma dessas pessoas. De alguma forma, sabendo da situação, na hora de pegar o suco de laranja engarrafado no supermercado, a mão dela ia sem dó para o suco A. O suco B era igual, como dito acima, porém a insistência causa espanto, a teimosia e a tentativa de justificar uma escolha egoísta, ainda mais que há uma opção lado a lado nas gôndolas da vida.
Claro que teve especialista – que compra sapatos italianos chutando cachorro, diga-se – garantindo que o processo de chutamento cachorroficado era importante para que cada lote do suco estivesse dentro dos padrões internos da empresa. E que os contrários, na verdade, seriam obscurantistas, gente que queria impor suas escolhas e ainda difamava uma indústria. “Que faz um trabalho honesto, paga impostos, gera muitos empregos e coloca suco de laranja saudável na mesa da família brasileira”, completou um diretor da empresa A, que também usa gravatas caras. Bem caras.
Enfim, a polêmica segue até hoje. Consumidores que discutem na Internet, campanhas de boicote, panfletos, até o Ministério Público foi acionado. Entretanto, a esmagadora maioria dos que consomem o suco A ignoram o procedimento do chute em cachorros. Não fazem ideia. Apenas compram, colocam na geladeira, servem aos filhos na hora do lanche e seguem com a figurinha ‘Eu amo meu cão’ na foto de perfil das redes sociais. Um ou outro fica sabendo do caso, eventualmente passa a consumir o suco B. Até comenta com parentes e conhecidos.
Sim, este é um texto de ficção. Só que, ao mesmo tempo, não é uma história de ficção.