3º NEURÔNIO

Na Eurásia, a Guerra dos Corredores Econômicos segue à toda

“Mega organizações eurasianas e seus respectivos projetos agora convergem em velocidade recorde, com um polo global muito à frente do outro”. Recomendamos o artigo de Pepe Escobar, publicado pelo The Craddle, com tradução de Patricia Zimbres para o 247


Guerra dos Corredores Econômicos agora segue à toda, com o divisor de águas que foi a primeira remessa de mercadorias da Rússia para a Índia pelo Corredor Internacional de Transporte Norte Sul (CITNS) já implementado.

São muito poucos, tanto no Oriente quanto no Ocidente, os que têm conhecimento de que esses corredores há muito vinham sendo preparados: o acordo Rússia-Irã-Índia para a implementação de uma rota comercial eurasiana mais curta e mais barata, usando o Mar Cáspio (comparado ao Canal de Suez), foi assinada já em 2000, ainda na era anterior ao 11 de setembro.

O CITNS em modo plenamente operacional assinala um poderoso marco da integração eurasiana – juntamente à Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), a União Econômica Eurasiana (UEEA) e, por último, mas não menos importante, o que há duas décadas descrevi como sendo o “Gasodutistão”.


O Cáspio é a Chave 


Demos uma primeira olhada em como esses vetores vêm interagindo. 

A gênese da atual aceleração foi a recente visita do Presidente da Rússia Vladimir Putin a Ashgabat, a capital do Turcomenistão, para a Sexta Cúpula Cáspia. Esse evento não apenas aprofundou a parceria estratégica Rússia-Irã, atualmente em desenvolvimento, como também, o que é de importância crucial, firmou um acordo entre  todos os cinco países litorâneos do Mar Cáspio que determina que absolutamente nenhum navio de guerra ou base da OTAN serão admitidos no local. 

O que virtualmente configura o Cáspio como um lago russo e, em  menor grau, iraniano – sem comprometer os interesses dos três “istãos”, Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão. Para todos os fins práticos, Moscou aumentou um pouco seu controle sobre a Ásia Central.

Como o Mar Cáspio é conectado ao Mar Negro por canais que saem do Volga construídos pela antiga URSS, Moscou sempre poderá contar com uma marinha de reserva de navios de pequeno porte – invariavelmente equipados com mísseis poderosos – que podem ser rapidamente transferidos para o Mar Negro, caso necessário.

Comércio e elos financeiros mais fortes com o Irã agora avançam paralelamente à conexão  dos três “istãos” à matriz russa. A república do Turcomenistão, rica em petróleo, de sua parte, sempre foi historicamente idiossincrática – além de destinar a maior parte de suas exportações à China.

Sob seu novo presidente, o jovem e possivelmente mais pragmático Serdar Berdimuhamedow, Ashgabat talvez venha a optar por se tornar membro da OCX e/ou da UEEA.

O Azerbaijão, estado litorâneo do Mar Cáspio, por seu lado, apresenta um caso complexo: produtor de petróleo e gás cobiçado pela UE como alternativa ao fornecimento de energia russa – embora isso não vá acontecer em um futuro próximo. 


A conexão Oeste-Asiática 


A política externa do Irã sob o Presidente Ebrahim Raisi ruma claramente para a Eurásia e o Sul Global. Teerã irá se incorporar formalmente à OCX como membro pleno na próxima cúpula a ser realizada em Samarcanda, em setembro, e sua solicitação formal de ingresso nos BRICS já foi apresentada.
Purnima Anand, presidente do Fórum Internacional dos BRICS declarou que a Turquia, a Arábia Saudita e o Egito têm grande interesse em se juntar aos BRICS. Caso isso aconteça, em 2024 talvez estejamos a caminho de um nó unindo o Oeste Asiático e o Norte da África, firmemente instalado no interior de uma das principais instituições do mundo multipolar.
Como Putin vai a Teerã na próxima semana para conversações trilaterais entre Rússia, Irã e Turquia, oficialmente sobre a questão da Síria, é fatal que o presidente turco Recep Tayyip Erdogan levante a questão dos BRICS.
Teerã vem operando em dois vetores paralelos. Na eventualidade de o Plano Amplo de Ação Conjunta (JCPOA, em inglês) ser  ressuscitado – uma possibilidade bastante longínqua, tendo em vista as últimas gracinhas ocorridas em Viena e em Doha – essa seria uma vitória tática. No entanto, aproximar-se da Eurásia seria uma iniciativa de um nível estratégico totalmente novo.

No quadro do CITNS , o Irã fará o uso maximamente vantajoso do geoestratégico porto de Bandar Abbas – situado entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, na encruzilhada entre a Ásia, a África e o Subcontinente Indiano. 

No entanto, por mais que a entrada nos BRICS possa ser exibida como um grande vitória diplomática, é evidente que Teerã não poderá fazer pleno uso de sua condição de membro se as sanções ocidentais – principalmente as dos Estados Unidos – não forem totalmente retiradas.


Os gasodutos e os “istãos” 


Um argumento convincente seria o de que a Rússia e a China poderiam futuramente preencher o vazio de tecnologia ocidental no processo de desenvolvimento iraniano. Mas plataformas tais como o CITNS, a UEEA e até mesmo o BRICS podem ter resultados muito maiores.

Por todo o “Gasodutistão”, a Guerra dos Corredores Econômicos se torna ainda mais complexa. A propaganda ocidental simplesmente não consegue admitir que o Azerbaijão, a Argélia, a Líbia, aliados da Rússia na OPEC, e até mesmo o Cazaquistão não estejam exatamente ansiosos para aumentar sua produção de petróleo para ajudar a Europa.

O Cazaquistão é um caso complicado: o país é o maior produtor de petróleo da Ásia Central e a caminho de se tornar um grande fornecedor de gás natural, logo depois da Rússia e do Turcomenistão. Mais de 250 campos de petróleo e gás são operados no Cazaquistão por 104 empresas, inclusive as gigantes de energia ocidentais, como Chevron, Total, ExxonMobil e Royal Dutch Shell.

Enquanto as exportações de petróleo, gás natural e derivados  de combustíveis fósseis representam 57% das exportações do Cazaquistão,  o gás natural responde por 85% do orçamento do Turcomenistão (com 80% das exportações dirigidas à China). É interessante notar que Galkynysh é o segundo maior campo de gás do planeta.

Comparado aos outros “istãos”, o Azerbaijão é um produtor relativamente menor (embora o petróleo responda por 86% do total de suas exportações), sendo basicamente um país de trânsito. As aspirações de Baku de atingir um grau elevado de riqueza centram-se no Corredor de Gás Meridional, que inclui nada menos que três gasodutos: Baku-Tblisi-Erzurum (BTE); o Duto Trans-Anatólia de Gás Natural Pipeline (TANAP), gerido pela Turquia; e o Trans-Adriático (TAP).

O problema com esse festival de siglas – BTE, TANAP, TAP – é que todas elas necessitam de maciços investimentos externos para aumentar sua capacidade, recursos esses que faltam à União Europeia, porque cada euro é usado pelos eurocratas não-eleitos de Bruxelas para “apoiar” o buraco negro que é a Ucrânia. Os mesmos problemas financeiros se aplicam a um possível Gasoduto Transcáspio, que mais adiante se conectaria ao TANAP e ao TAP.

Na Guerra dos Corredores Econômicos – o capítulo “Gasodutistão” – um aspecto crucial é que a maior parte das exportações de petróleo cazaques para a União Europeia passa pela Rússia através do Consórcio do Gasoduto Cáspio (CPC). Como alternativa, os europeus vêm considerando uma ainda nebulosa Rota de Transporte Transcáspia, também conhecida como o Corredor do Meio (Cazaquistão-Turcomenistão-Azerbaijão-Geórgia-Turquia). Isso foi objeto de intenso debate em Bruxelas no mês passado.

A conclusão é que a Rússia permanece com pleno controle do tabuleiro dos gasodutos eurasianos (e não estamos nem falando dos gasodutos operados pela Gazprom Poder da Sibéria 1 e 2, direcionados à China).

Os executivos da Gazprom têm plena consciência de que um aumento rápido das exportações de energia para a União Europeia está fora de questão. Eles também levam em conta a Convenção de Teerã – que contribui para evitar e controlar a poluição e manter a integridade ambiental do Mar Cáspio, assinada por todos os países litorâneos.


Quebrando a ICR na Rússia


A China, de sua parte, confia que um de seus piores pesadelos estratégicos possa vir a desaparecer. O notório  “escapar de Malaca” fatalmente irá se materializar, em cooperação com a Rússia, pela Rota do Mar do Norte, que irá  encurtar o corredor de comércio e conectividade do Leste Asiático até a Europa do Norte, de 11.200 para apenas 6.500 milhas náuticas. Podem chamá-lo de o gêmeo polar do CITNS.

Isso explica também por que a Rússia vem se ocupando em construir uma grande variedade de  quebra-gelos estado-da-arte.

Aqui, então, temos uma interconexão com as Novas Rotas da Seda (o CITNS segue paralelamente à ICR e a UEEA), com o Gasodutistão e com a Rota do Mar do Norte, que em breve irá virar de cabeça para baixo o domínio ocidental do comércio internacional.

E claro que os chineses já tinham tudo isso planejado há bastante tempo. O primeiro Livro Branco sobre a política da China para o Ártico, de janeiro de 2018, já mostrava que Pequim tem como objetivo, “juntamente com outros estados” (significando a Rússia) implementar rotas de comércio marítimo no Ártico no âmbito da Rota da Seda Polar.

E, de forma pontual, Putin subsequentemente confirmou que a Rota do Mar do Norte deverá interagir e complementar a Rota da Seda Marítima chinesa.

A cooperação econômica Rússia-China vem se desenvolvendo em tantos níveis complexos e convergentes que tentar acompanhar sua evolução é uma experiência estonteante. 

Uma análise mais detalhada irá revelar alguns dos pontos mais sutis, por exemplo, como a ICR e a OCX interagem, e como os projetos da ICR terão que se adaptar às fortes consequências da Operação Z de  Moscou na Ucrânia, com maior ênfase sendo colocada no desenvolvimento dos corredores do Oeste Asiático e da Ásia Central.

É sempre crucial ter em mente que um dos principais objetivos estratégicos da implacável guerra híbrida de Washington contra a Rússia sempre foi o de quebrar os corredores da ICR que cruzam o território russo.

No pé em que as coisas estão, é importante se dar conta de que dúzias dos projetos da ICR nas áreas industrial, de investimentos e da cooperação interfronteiras e inter-regional irão acabar por consolidar o conceito russo de uma Parceria da Grande Eurásia – que, essencialmente, gira em torno do estabelecimento de cooperação multilateral com uma vasta gama de países pertencentes a organizações tais como a UEEA, a OCX, os BRICS e a ASEAN.

Bem-vindos ao novo mantra eurasiano: Façam Corredores Econômicos, Não a Guerra.

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