Costumo brincar que minha mãe ama tanto o magistério que teve os dois filhos em dezembro, para não atrapalhar o ano letivo… Claro que não foi planejado assim, pois o que professora mais espera no fim do ano é pelas férias, não por trocar fraldas. Mas eu digo com orgulho que frequento as salas de aula desde o ventre, porque a mãe começou a lecionar uns anos antes de conhecer meu pai, ainda como professora primária.
Como muitas educadoras em início de carreira, ela dava aulas em duas escolas e ainda conciliava com os estudos da Licenciatura em Letras. Nos primeiros dois anos, era uma escola em Glorinha e a outra em Gravataí, mas assim que pôde conseguiu ficar só na aldeia. E a faculdade era Porto Alegre. Isso nos anos 70. Se a gente pena com transporte público hoje, imagina naquela época? Só com muita garra e vontade.
Quando a mãe recebeu o diploma, em 1980, eu já estava “no forninho”. E meu pai conta que ela só aceitou se casar porque ele entendia que a prioridade dela era terminar a faculdade. “Quero estar junto pra somar, nunca pra atrasar tua vida”, foi o que ele respondeu. Como os dois já estavam passando dos 30 anos, casaram quando minha mãe estava no último ano da faculdade. Logo em seguida já descobriram que eu viria. Pelo jeito, estava com pressa de chegar, hehe.
E naquele ano, a diretora da escola Antônio Gomes Corrêa deve ter encontrado alguns cabelos brancos, porque foram 10 professoras ganhando bebês! Eu fui a caçula da tropa de 7 meninas e 3 meninos. Na foto acima, do Jardim de Infância, tem metade da galerinha: Ingrid, eu, Marcelo, Cristiano e Ana Paula. As regras eram diferentes naquele tempo, a criança podia completar a idade até o fim do ano, então eu, que faria 5 anos só em dezembro, comecei a frequentar a escola com apenas 4 anos.
No Antônio Gomes, onde estudei até a 7ª série, eu nunca fui apenas uma aluna. Era a filha da professora Maria Lucia. A maioria das minhas professoras me conheciam desde a barriga da mãe. A escola era uma grande família. Quando se é criança e adolescente, isso não é tão legal assim. Principalmente por dois motivos: primeiro, porque os colegas me viam como privilegiada de um jeito que nunca fui (os únicos privilégios que tive foi usar o banheiro da secretaria e pedir água lá também, mas nas questões pedagógicas minha mãe era super correta); segundo, porque eu jamais podia transgredir, testar limites, fazer qualquer coisa “fora da linha”, que minha mãe saberia imediatamente.
Por isso foi muito importante mudar para uma escola onde eu pudesse uma aluna como outra qualquer. Libertador.
Mas tenho muito orgulho em dizer que sou filha da professora Maria Lucia. É, a que trabalhou mais de 20 anos no Antônio Gomes. Uma história tão forte que já tem mais de 20 anos que a mãe se aposentou, e ainda é reconhecida por ex-alunos. E muita gente ainda me conhece como a filha da professora.
Também posso dizer que foi sendo professora que minha mãe me ensinou que lugar de mulher é na luta. Eu tinha 6 anos, ia começar a 1ª série, quando aconteceu a maior greve do funcionalismo estadual. E a mãe era uma das grevistas que ia pra frente do Palácio do Governo tocar sineta pro Simon, enquanto o pai ficava em casa comigo e meu irmão. Ela podia estar em casa me ensinando a ler, coisa que eu estava tão ansiosa pra aprender que acabei fazendo sozinha. Mas a mãe foi pra rua e me ensinou que lugar de mulher não precisa ser no fogão, mas lutando por condições dignas de trabalho.
Com uma lição dessa, eu não ia ser bela, recatada e do lar, né? Quando a greve terminou e as aulas começaram, eu já sabia ler, e era uma menina mais esperta. Minha mãe guarda a sineta até hoje, e as memórias de vários governos que desrespeitaram os professores. Infelizmente, depois de tanta luta, a aposentadoria ainda não é digna como merece, porque há anos não tem reajuste.
Ainda assim, é meu exemplo de vida. Eu nunca quis ser professora, não é minha vocação. Mas brinquei muito de “aulinha”, depois ajudei a mãe a corrigir provas. Já adulta, cheguei a dar aulas particulares de Língua Portuguesa. E depois de algumas voltas da vida, neste ano conclui uma pós-graduação em Arte-educação. Não que eu pretenda ir pra sala de aula, meu foco é em projetos culturais. Mas agora posso dizer que sou uma arte-educadora. E discípula de Paulo Freire.
Pois é, eu sou filha de professora, e isso está no meu sangue. Com muito orgulho.