RAFAEL MARTINELLI

Eu queria ser como o Lula de hoje

Lula, a maior personagem da história democrática brasileira, tomou posse pela terceira vez em um país dividido, mas inquebrantável.

Admito, choro, porque acabei de testemunhar uma cerimônia para o mundo, com a cara do Brasil que eu sonho para os que amo, não conheço ou nem nasceram ainda, onde, entre representantes das minorias, dos discriminados e desvalidos, uma negra, de família de catadores, veste a faixa presidencial no Presidente da República e uma viralatinha chamada Resistência é carregada por esse homem que engasga ao falar sobre alguém que, agora, em algum semáforo, desmaia um pedido de “me ajuda”.

A ideia, que permaneceu livre mesmo com a prisão do corpo de Lula em uma conspiração de “juiz ladrão”, confirmou-se hoje, constitucionalmente, na esperança de 60.345.999 brasileiros, lulistas ou não, em descondenar o país das trevas delirantes que ameaçavam a democracia.

Goste-se ou não do retirante de Garanhuns, que personifica muitos dos feitos e mal feitos da cultura brasileira, o ‘ex-presidiário’ subiu a rampa como um Mandela, um inocente condenado apenas às páginas principais dos livros da história de seu país.

Um iluminado, não apagado nem por lúgrebes lâmpadas na sepultura de uma cela de 15 metros quadrados esquecida no lixo da história da ‘República de Curitiba’, e que se mostra leve e apaixonado, ao proporcionar ao mundo uma mensagem como esta, deste 1º de janeiro de 2023.

Reputo uma lição magnífica de humanidade, altruísmo, respeito à democracia e ao império das leis, mas também um brado de indignação e missão a ser cumprida com a força de um fim de vida, os discursos de posse do sétimo dos oito filhos do seu Aristides e da dona Eunice, um senhor de 77 anos que permaneceu preso por 580 dias – injustamente.

Mesmo neste passado recente arrastado para esse Lago de Lama de Dante, não vi na saída limpa de agora – presidente oficializado na mais simbólica posse que já vi, ou li sobre, e aqui congratulo Janja pela sensibilidade – sentimento algum de revanche daquele que é um dos maiores brasileiros de todos os tempos.

Apelou Lula por um único Brasil, ao lado do vice, Alckmin. Clamar, também, por justiça, não é revanchismo. É justiça, e só.

Se politicamente tem suas ‘culpas’, ao menos frente à hipocrisia, por ter sido ‘Pelé da Realpolitik’ ao manter a ‘compra’ de congressistas para governar da única maneira que permite nosso presidencialismo de coalizão (e ter atingido índices positivos e de aprovação como nunca antes na história do país), fato é que Lula supera preconceitos e fake news desde o momento em que as elites perceberam a chance de um operário chegar ao poder.

Se em 1989 Collor venceu em uma campanha tão moderna que explorou o ‘comunismo’, o caso da filha fora do casamento Lurian (cuja tentativa de aborto e abandono parental foi desmentida pela própria avó) e o ‘crime’ do pobre ter um ‘som 3 em 1’; o ‘antipetismo’ que canibalizou Dilma e regurgitou a seita extremista bolsonarista também inventou fortunas do ex-presidente e dos filhos, como o ‘Lulinha da Friboi’ e da Ferrari dourada, apenas uma reedição de vilanias que, inegável é, colaboraram para a morte de dona Marisa, sua companheira de vida.

E, pasmo eu, esse político, se guarda em seu íntimo, não demonstra ao seu povo rancor, ou mesmo sinaliza perseguições. Se palavras tem força, e matam inclusive, Lula vive e deixa viver, vive e deixa morrer.

Incontestavelmente era o único brasileiro possível de derrotar Jair Bolsonaro e governar para os 215 milhões de brasileiros. Assim como é talvez o único com habilidade política e a legitimidade da maior votação da história da redemocratização para laçar para o campo democrático reses perdidas para o golpismo.

O que, insisto, não se faz sem o didatismo do império das leis, o que nos alerta o resultado presente de anistias amplas, gerais e irrestritas, que chocaram o ovo da serpente que eclodiu em adoradores de torturadores que enfiavam ratos nas vaginas de irmãs, de mães e amores de alguém; e, ruim para qualquer democracia, deixam pelo menos meio país desconfiado com suas Forças Armadas.

Um primor seria a mescla do pronunciamento de posse no Congresso com o discurso no alto da rampa do Palácio do Planalto, mesmo que ambos já sejam peças para a História.

Se um dia o que Lula disse hoje restar apenas palavras proferidas antes de mais um ‘acordão nacional’, lamento teremos perdido talvez a última chance de nossa geração voltar à normalidade democrática, constitucional, política, científica e, talvez o mais importante, a uma melhor convivência dentro das nossas famílias – o que Lula também apelou.

Ao fim, o mundo não começa, nem acaba em 2023. Reputo, porém, Lula fará um bom governo. Aos desconfiados e enlutados, deixo como uma enviesada mensagem de esperança um “pior que está não fica”. Inquebrantável é o Brasil, e Lula, mesmo enfrentando crises mundiais, teve êxito em seus governos, como prova a ‘ideologia dos números’ e seus fatos, aqueles chatos que atrapalham argumentos.

Há de se falar menos de misérias ideológicas e mais sobre a fome e o desemprego, ou mesmo sobre a soberania do país que tem a Amazônia, o ouro do mundo, um Brasil o qual os tubarões da geopolítica nunca temeram virar uma Cuba, ou Venezuela, e sim uma China.

Confesso: queria ser como Lula, presentear o povo com uma posse de símbolos como os que hoje me fizeram chorar, e manter a paz de espírito frente a tantas desigualdades, injustiças e ódio. É um porte de ‘armas’ que não consigo decretar, ainda.

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