“Atas de reuniões secretas registram a omissão do Ministério da Saúde, sob o comando do então general Eduardo Pazuello”. Recomendamos a reportagem publicada pela Agência Pública, que pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação.
Documentos inéditos com detalhes da gestão de Jair Bolsonaro (PL) sobre o combate à pandemia da Covid-19 revelam como o governo federal tratou internamente um dos momentos mais tristes da história brasileira recente: o colapso da saúde em Manaus, que matou 2.195 pessoas só em janeiro de 2021, muitas delas, por asfixia. As atas de reuniões secretas, realizadas entre diversos ministérios e órgãos no Palácio do Planalto naquele período, registraram a omissão do Ministério da Saúde, sob o comando do então general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, diante da tragédia anunciada.
Os documentos evidenciam que o governo federal só passou a tratar com urgência a crise sanitária no Amazonas após provocação do Supremo Tribunal Federal (STF), mostram a insistência na aplicação do tratamento precoce, à época já comprovadamente ineficaz, além do despreparo em agir durante a crise.
A Agência Pública iniciou uma série de reportagens sobre a documentação, até então sigilosa, de 233 reuniões realizadas entre março de 2020 e setembro de 2021. Os encontros envolviam representantes de 26 órgãos federais – incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) – que integravam o Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP). Coordenado pela Casa Civil, que era chefiada pelo general da reserva do Exército Walter Braga Netto, o CCOP era responsável por supervisionar e monitorar os impactos da Covid-19.
A primeira reportagem da série mostrou como o Ministério da Defesa, ainda sob chefia do general da reserva do Exército Fernando e Silva, se empenhou na produção de cloroquina durante a pandemia.
As atas reunidas em 806 páginas são o registro histórico do descaso do governo federal diante da perda de centenas de milhares de brasileiros e das consequências da doença. Enquanto o tom das notícias e os relatos dos profissionais de saúde na época revelavam a urgência da adoção de medidas concretas para combater o vírus, os documentos internos mostram que representantes do governo não consideravam a gravidade dos acontecimentos.
Era comum, por exemplo, a apresentação, pela Secretaria de Governo (SEGOV), de demandas urgentes por parte dos estados, conforme estes eram assolados por seguidos picos de contágio da doença. Mas tais pedidos ficavam de fora da lista de tarefas e encaminhamentos aos integrantes do CCOP, geralmente compilados ao fim dos encontros.
Ministério da saúde omitiu dados de Manaus ao comitê de crise
A tragédia de Manaus é um dos exemplos reveladores da dicotomia entre o que era debatido pelo comitê de crise e a realidade.
Em 27 de dezembro de 2020, o Ministério da Saúde identificou um aumento significativo no número de hospitalizados em Manaus, que se multiplicou de 36 casos no dia 20 para 88 casos no dia 27, conforme informações enviadas pela pasta à CPI da Covid no Senado Federal. Às 10h04 do dia seguinte, o comitê de crise se reuniu na sala 97 do Palácio do Planalto, mas o tema não foi pauta de discussão e o Ministério da Saúde sequer citou o aumento de infecções no encontro.
Ainda no dia 28 de dezembro, Eduardo Pazuello reuniu seu secretariado e principais assessores para debater a situação de Manaus e “planejar ações compatíveis com essa evolução das hospitalizações”, de acordo com os documentos da CPI.
Somente no dia 30, a pedido do Subchefe Adjunto de Gestão Pública, o Ministério da Saúde informou ao comitê os números de óbitos e de contaminação no Estado do Amazonas, mas continuou escondendo o que acontecia na capital. O órgão não só omitiu o crescimento de internados, como os dados apresentados sobre Manaus davam a impressão de que a situação estava sob controle, com a redução de contaminações no município: “A capital do estado (Amazonas) apresentou redução de casos entre a semana epidemiológica 51 (13/12 a 19/12) e a semana epidemiológica 52 (20/12 a 26/12) de 11,8%, sendo 2.503 casos novos e 2.208 casos novos, respectivamente”, mas o número de óbitos, também registrados, haviam aumentado em 48%, passando de 50 para 74.
A pasta registrou ainda neste dia que entregou 470 ventiladores para 13 estados, sendo que 40 foram enviados para o Amazonas.
Na reunião do comitê de crise realizada naquele 30 de dezembro, o representante da Secretaria de Governo também relatou que o estado do Amazonas “havia pedido apoio no fornecimento de EPIs, habilitação de leitos, disponibilização de profissionais de saúde etc” e que esta demanda havia sido repassada ao Ministério da Saúde e à Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil da Presidência da República (SAM). Ao término do encontro – que durou menos de 30 minutos – ficou decidido que a Saúde deveria apenas “avaliar a demanda” do Amazonas.
Cloroquina em resposta ao colapso sanitário
A situação em Manaus foi só se agravando com o tempo, os números de hospitalizados cresciam a cada dia e, uma semana após o primeiro alerta sobre a gravidade da situação, em 3 de janeiro, uma comitiva do Ministério da Saúde se deslocou até a cidade para, mais uma vez, apenas “avaliar as demandas do estado”.
A visita foi relatada ao comitê de crise durante a reunião do dia 6 de janeiro e mostra que a prioridade do Subchefe Adjunto Executivo da SAM, o militar reformado Ronaldo Navarro – responsável por coordenar o encontro naquele dia – era saber se o Amazonas estava aplicando o tratamento precoce.
“Em resposta ao questionamento apresentado pelo Subchefe Adjunto Executivo da SAM acerca da implementação/incremento, pelo Estado do Amazonas, de tratamento precoce para a Covid-19, o representante do MS informou que o estado não tem adotado, a contento, essa estratégia. Salientou, ainda, que essa questão foi tratada pela equipe técnica que esteve em Manaus no dia 04 de janeiro”, relata o documento obtido pela Pública.
Esse diagnóstico foi posteriormente explorado pelo ministro Eduardo Pazuello e pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que chegaram a defender o uso de medicamentos sem eficácia para conter o colapso no estado. A disseminação do tratamento precoce em Manaus virou um projeto de governo.
A mesma equipe do Ministério da Saúde que esteve na cidade no dia 4 também previu o que aconteceria dali a pouco mais de uma semana: “há possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias”. A informação, revelada em reportagem da Pública em 18 de janeiro de 2021, consta em um documento enviado pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal. Mas esse dado não foi levado ao comitê de crise, conforme as atas obtidas pela reportagem.
Os membros do governo que se reuniam três vezes por semana, exatamente para planejar o combate à pandemia, não foram informados que o sistema de saúde em Manaus entraria em colapso, nem que pacientes morreriam de asfixia por falta de oxigênio.
O então ministro Eduardo Pazuello foi à cidade em 11 de janeiro, quando reforçou sua defesa do tratamento precoce. “Senhores, senhoras, não existe outra saída: nós não estamos mais discutindo se esse profissional ou aquele concorda. Os conselhos federais e regionais já se posicionaram, os conselhos são a favor do tratamento precoce, do diagnóstico clínico”, disse durante entrevista em Manaus.
No dia seguinte, 12, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu as mortes à falta de tratamento precoce, comprovadamente ineficaz. “Olha o que estava acontecendo em Manaus agora. Vamos falar Amazonas porque Amazonas se resume, em grande parte, a Manaus. São poucas cidades lá. Mandamos ontem o nosso ministro da Saúde para lá. Estava um caos. Não faziam tratamento precoce”, disse a apoiadores no Palácio da Alvorada.
Como resposta à crise, no dia 13 de janeiro o representante do Ministério da Saúde registrou durante a reunião do comitê de crise que a pasta enviou, dentre outros itens, 120 mil comprimidos de Hidroxicloroquina para o estado do Amazonas.
Em 14 de janeiro, a cidade já enfrentava o colapso sanitário. Neste dia foi registrado um pico de enterros: 213 sepultamentos em 24 horas. A média diária de mais de cem sepultamentos se manteve por pelo menos 45 dias seguidos.
Além disso, faltava oxigênio para manter os pacientes em estado grave internados nas unidades de saúde e não havia mais covas disponíveis para enterrar os mortos. Para tentar frear o vírus, o governo do Amazonas instaurou um toque de recolher e proibiu a circulação de pessoas entre 19h e 6h na cidade.
Ainda assim, na reunião do CCOP de 16 de janeiro, o então diretor de Programa do Ministério da Saúde, Marcelo Pires, relatou que, entre os problemas identificados pelo ministério estava a “falta de atendimento precoce” no município de Manaus.
Como se não bastasse, pouco depois, na reunião de 18 de janeiro, o militar subchefe da SAM, Ronaldo Navarro, externou sua preocupação com o efeito da crise na imagem brasileira perante o mundo, pois “requereu ao MS [Saúde] que informe sobre a Cepa do Amazonas, para mitigarmos os impactos negativos dessa informação no mundo”.
Ação rápida só veio depois de provocação do STF
Diante da inércia do governo federal, o Supremo Tribunal Federal agiu. Em 15 de janeiro, o relator da ADPF 756, ministro Ricardo Lewandowski, pediu que o governo Bolsonaro apresentasse ao tribunal um “plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou pretende desenvolver para o enfrentamento da situação de emergência”. O plano deveria ser atualizado a cada dois dias, para o acompanhamento da situação.
Obrigado pelo STF, o CCOP convocou sua primeira reunião extraordinária em 16 de janeiro para elaborar uma resposta à ADPF, discutir a “situação no Estado do Amazonas” e as “vacinas contra Covid-19”.
A Secretaria de Articulação e Monitoramento da Casa Civil finalmente passou a tratar a situação com urgência, pois “pediu que todos os Ministérios e Órgãos/Entidades repassem as informações tempestivamente a este Comitê de Crise e ao CCOP para que possamos atuar da forma mais rápida possível”.
Ou seja, somente 12 dias depois da visita do Ministério da Saúde ao estado, na qual técnicos advertiram do colapso iminente, a pasta respondeu ao pedido da SAM com a afirmação de que estava “elaborando um Plano de Contingência”.
Já o Ministério das Comunicações, então sob a batuta de Fábio Faria (PP), acrescentou que relatórios e outros informes ajudariam na comunicação das ações do governo: “devemos nos concentrar no que foi realizado e enviado ao Estado do Amazonas nas últimas 48 horas, para fins de informações à População do Estado e de todo o País”.
Na mesma ocasião, a SAM pediu para que fossem enfatizadas, pela comunicação governamental, “as dificuldades de transportes na região amazônica e seu desafio logístico” e “o esforço da Força Aérea Brasileira – FAB na ajuda da logística complicada”. Depois, a Secretaria de Governo (SEGOV) perguntou ao MS “se a demanda de oxigênio no Amazonas está ‘no pico’, aumentando ou regredindo”, visto que isso “afeta a quantidade necessária”. A ata do dia não registra resposta a este questionamento.
No total, a ADPF 756 foi citada ao menos 18 vezes no documento, a maior parte delas pedindo que os órgãos trouxessem informações a serem repassadas ao STF.
Mas a abordagem mudou poucos meses depois. Ao invés de pedir informações para seguir acompanhando a situação sanitária, a SAM passou a buscar o arquivamento da ação no Supremo. “A SAM solicitou ao MS uma Nota Técnica sobre o consumo de oxigênio em Manaus para subsidiar o pedido de arquivamento da ADPF no 756 junto ao STF”, registrou a ata do dia 14 de maio de 2021. O MS foi cobrado novamente no dia 21 e no dia 24, últimas vezes em que a ação foi citada.