“Tanto a China quanto a Rússia, cada uma mostrando suas particularidades, estão pesadamente comprometidas na construção de modelos econômicos praticáveis”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado no Asia Times e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
E nós, esperando pelo fim do mundo,
esperando pelo fim do mundo,
esperando pelo fim do mundo
Senhor Jesus, espero sinceramente
que Você esteja mesmo voltando,
Porque Você deu partida em algo tremendo.
Elvis Costello, Waiting for the End of the World, 1977
Não conseguiríamos sequer começar a entender os infindáveis efeitos cascata derivados do terremoto geopolítico que, em 2023, sacudiu o mundo: Putin e Xi, em Moscou, sinalizando de fato o começo do fim da Pax Americana.
Há mais de um século, esse vem sendo o anátema máximo para as rarefeitas elites hegemônicas anglo-americanas: a parceria estratégica ampla, assinada e selada por dois pares concorrentes, interligando uma imensa base industrial a uma preeminência no fornecimento de recursos naturais – com o valor agregado dos armamentos estado-da-arte e da racionalidade diplomática russa.
Do ponto de vista dessas elites, cujo Plano A era sempre uma versão degradada do Dividir para Dominar do Império Romano, isso não era para ter acontecido. Na verdade, enceguecidos por orgulho, eles não poderiam ter previsto que isso aconteceria. Em termos históricos, isso sequer se qualifica como uma remixagem do Torneio das Sombras. É mais como O Império Indecente Deixado na Sombra “espumando de ódio” (direitos autorais de Maria Zakharova).
Xi e Putin, em uma jogada Sun Tzu, imobilizaram o Orientalismo, o Eurocentrismo, o Excepcionalismo e, por último, mas não menos importante, o Neocolonialismo. Não é de admirar que o Sul Global tenha ficado extasiado com o que ocorreu em Moscou.
Para piorar ainda mais as coisas, temos a China, de longe a maior economia do mundo se medida em paridade de poder de compra (PPC), e também a maior exportadora. E temos a Rússia, cuja economia, em termos de PPC, é equivalente ou ainda maior que a da Alemanha – com as vantagens adicionais de ser o maior exportadora de energia do mundo, não tendo sido forçada à desindustrialização.
Juntos, e em sincronia, os dois países focam agora a criação das condições necessárias para superar o dólar dos Estados Unidos.
Entra em cena um dos cruciais e lacônicos ditos do Presidente Putin: “Somos favoráveis ao uso do yuan chinês para pagamentos entre a Rússia e países da Ásia, África e América Latina”.
Uma consequência-chave dessa aliança geopolítica e geoeconômica, cuidadosamente planejada ao longo dos últimos anos, já vem acontecendo: o surgimento de uma possível tríade em termos de relações de comércio global e, em muitos aspectos, uma Guerra Comercial Global.
A Eurásia vem sendo liderada – e em grande medida organizada – pela parceria Rússia-China. A China também irá desempenhar um papel fundamental em todo o Sul Global, mas a Índia também pode se tornar muito influente, aglutinando o que seria um Movimento Não-Alinhado (MNA) turbinado. E então há também a antiga “nação indispensável” que domina os vassalos europeus e a anglosfera reunida nos Cinco Olhos.
O que os chineses realmente querem
O Hegêmona, sob a “ordem internacional baseada em regras” de sua própria autoria, na verdade jamais praticou diplomacia. O Dividir para Dominar, por definição, impede a diplomacia. Agora, sua versão de “diplomacia” degenerou ainda mais em insultos toscos proferidos por um batalhão de funcionários intelectualmente incapazes e decididamente imbecilizados dos Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido.
Não é de surpreender que um verdadeiro cavalheiro, o Chanceler Sergey Lavrov, tenha sido forçado a admitir que “a Rússia não é mais parceira da União Europeia… A União Europeia ‘perdeu’ a Rússia. Mas a culpa é da própria União. Afinal, os estados-membros da UE… declaram abertamente que a Rússia deve sofrer uma derrota estratégica. É por essa razão que vemos a UE como uma organização inimiga”.
E, no entanto, o novo conceito russo de política externa anunciado por Putin em 31 de março, deixa bem claro: a Rússia não se vê como “inimiga do Ocidente” e não busca se isolar.
O problema é que, do outro lado, não há praticamente nenhum adulto com quem conversar, mas apenas um bando de hienas. Isso levou Lavrov a mais uma vez ressaltar que medidas “simétricas e assimétricas” podem ser tomadas contra aqueles envolvidos em ações “hostis” a Moscou.
Quando se trata do Excepcionalistão, essa hostilidade fica evidente: os Estados Unidos são designados por Moscou o principal instigador anti-Rússia, e a política do Coletivo Ocidental, de modo geral, é descrita como “um novo tipo de Guerra Híbrida”.
Mas o que realmente importa para Moscou são os pontos positivos que vêm surgindo em outras áreas do mundo: a incessante integração eurasiana; o estreitamento de vínculos com “centros globais amigos” – a China e a Índia, o aumento da ajuda à África; uma cooperação mais estratégica com a América Latina e o Caribe, com as terras do Islã – Turquia, Irã, Arábia Saudita, Síria, Egito – e com a ASEAN.
O que nos traz a algo de importância essencial que foi, como seria de se prever, maciçamente ignorado pela mídia ocidental: o Fórum de Boao para a Ásia, que teve lugar quase que simultaneamente ao anúncio do novo conceito de política externa da Rússia.
O Fórum de Boao, iniciado em 2001, ainda na era anterior ao 11 de setembro, tomou como modelo Davos, mas é totalmente chinês, tendo seu secretariado sediado em Pequim. Boao localiza-se na província de Hainan, uma das ilhas do Golfo de Tonkin, e hoje um paraíso turístico.
Uma das principais sessões do fórum deste ano tratou de desenvolvimento e segurança, tendo sido presidida pelo antigo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, que hoje é presidente de Boao.
Foram feitas diversas referências à Iniciativa de Desenvolvimento Global de Xi que, por sinal, foi lançada em Boao, em 2022.
O problema é que essas duas iniciativas estão diretamente ligadas ao conceito da ONU de paz e segurança, e à extremamente suspeita Agenda 2030 sobre “desenvolvimento sustentável”- que não trata exatamente de desenvolvimento e muito menos de “sustentabilidade, sendo na verdade uma trama fortemente corporativa de Davos. A ONU, por seu lado, é basicamente refém dos caprichos de Washington. Pequim, por enquanto, prefere cooperar.
O Primeiro-ministro Li Qiang foi mais específico. Enfatizando o conceito marca registrada de “comunidade de um futuro compartilhado para a humanidade” como a base para a paz e o desenvolvimento, ele associou a coexistência pacífica com o “Espírito de Bandung” – dando continuidade direta ao surgimento do Movimento Não-Alinhado em 1955: essa deveria ser a “Maneira Asiática” de respeito mútuo e construção de consenso – em oposição ao “uso indiscriminado de sanções unilaterais e de jurisdição de longo alcance”, e da recusa de “uma nova Guerra Fria”.
Isso levou Li Qiang a dar ênfase ao impulso chinês de aprofundar o acordo comercial Leste-Asiático RCEP, e também fazer avançar as negociações sobre o acordo de livre comércio entre a China e a ASEAN. E tudo isso integrado à nova expansão da Iniciativa Cinturão e Rota, ao contrário do protecionismo comercial.
Para os chineses, portanto, o que importa, entrelaçadas às questões comerciais, são as interações culturais, a inclusividade, a confiança mútua, a peremptória recusa ao “choque de civilizações” e à confrontação ideológica.
Por mais que Moscou aprove sem hesitação todos os tópicos acima citados – e de fato os pratique com sua finesse diplomática – Washington se vê aterrorizada ao perceber que essa narrativa chinesa é extremamente atraente ao Sul Global. Afinal, a única coisa que o Excepcionalistão tem para ofertar no mercado das ideias é a dominação unilateral, o Dividir e Dominar, e “ou você está de nosso lado ou está contra nós”. E, nesse último caso, você será sancionado, perseguido, bombardeado e/ou sofrerá mudança de regime.
Estaríamos assistindo à repetição de um 1848?
Enquanto isso, nos territórios vassalos, surge a possibilidade de uma reencenação de 1848, ano em que uma grande onda revolucionária varreu toda a Europa.
Em 1848, tratava-se de revoluções liberais. Hoje, o que vemos são revoluções essencialmente populares e antiliberais (e antiguerra) – desde agricultores da Holanda e da Bélgica até os populistas não-reconstruídos da Itália e uma combinação de populistas de Esquerda e de Direita na França.
Talvez seja cedo demais para ver esses desdobramentos como uma Primavera Europeia. No entanto, o que é certo, em diversas latitudes, é que o cidadão europeu médio está cada vez mais inclinado a se desvencilhar do jugo da Tecnocracia Neoliberal e sua ditadura de Capital e Vigilância. Sem falar na belicosidade da OTAN.
Como praticamente todos os meios de comunicação europeus são controlados pelos tecnocratas, as pessoas jamais encontrarão discussões como esta na mídia convencional. Mas há um sentimento vago pairando no ar de que esse talvez seja o presságio de um fim de dinastia ao estilo chinês.
No calendário chinês é assim que acontece sempre: seu relógio histórico-social sempre marca períodos de entre 200 e 400 anos por dinastia.
Há de fato indicações de que a Europa talvez esteja passando por um renascimento. O período de sublevações será longo e árduo – devido às hordas de anarco-liberais que atuam como idiotas úteis para a oligarquia ocidental – ou poderá chegar a um ponto de crise em um único dia. O alvo é bem claro: a morte da Tecnocracia Neoliberal.
É assim que a visão de Xi e Putin pode avançar sobre o Coletivo Ocidental: mostrando que esse simulacro de “modernidade” (que inclui a hidrófoba cultura de cancelamento) é essencialmente oco se comparado com valores culturais tradicionais e profundamente enraizados – sejam eles confucionistas, taoístas ou ortodoxo-russos. Os conceitos chinês e russo de estado-civilização são muito mais atraentes do que podem parecer.
Bem, a revolução (cultural) não será televisionada, mas talvez opere seu feitiço por meio de incontáveis canais do Telegram. É bem possível que a França, fascinada por rebeliões ao longo de toda a sua história, assuma a vanguarda – mais uma vez.
Mas nada irá mudar se o cassino financeiro global não for subvertido. A Rússia ensinou ao mundo uma lição: ela vinha se preparando em silêncio para uma Guerra Total de longo prazo. Tanto é assim que seu bem calibrado contragolpe virou de ponta-cabeça a Guerra Financeira – desestabilizando completamente o cassino. A China, enquanto isso, está se reequilibrando, e a caminho de estar preparada para a Guerra Total, híbrida ou não.
O inestimável Michael Hudson, recém-saído de seu novo livro, The Collapse of Antiquity, onde ele habilmente analisa o papel da dívida na Grécia e em Roma, as raízes da civilização ocidental, explica suscintamente o estado atual de coisas:
“A América provocou uma revolução colorida no escalão mais alto, na Alemanha, na Holanda, na Inglaterra e na França, essencialmente onde a política externa europeia não vem representando os interesses econômicos americanos (…) A América simplesmente disse: nos comprometemos a apoiar uma guerra da democracia (em sua própria acepção, significando uma oligarquia que inclui o nazismo da Ucrânia) contra a autocracia (…) Autocracia é qualquer país forte o suficiente para impedir o surgimento de uma oligarquia credora, como a China impediu uma oligarquia credora”.
Então, essa “oligarquia credora”, de fato, pode ser explicada como a intersecção tóxica entre os sonhos molhados globalistas de controle total e a Dominação de Espectro Total militarizada.
A diferença é que agora Rússia e China vêm mostrando a todo o Sul Global que a ameaça que os estrategistas americanos faziam a esses países – vocês irão “morrer congelados na escuridão” caso não façam o que mandamos – não se aplica mais. A maior parte do Sul Global está agora em uma aberta revolta geoeconômica.
O totalitarismo neoliberal globalista, é claro, não desaparecerá sob uma tempestade de areia. Pelo menos, não por enquanto. Ainda temos pela frente um caos tóxico: suspensão de direitos constitucionais, propaganda orwelliana, esquadrões de capangas de aluguel, censura, cultura do cancelamento, conformismo ideológico, impedimentos irracionais à liberdade de movimento, ódio, e até mesmo perseguição a sub-homens eslavos, segregação, criminalização da dissidência, queima de livros, julgamentos-espetáculo, mandados de prisão falsos emitidos pelo tribunal canguru que é a Corte Penal Internacional, terror ao estilo ISIS.
Mas o vetor mais importante é que tanto a China quanto a Rússia, cada uma mostrando suas complexas particularidades e ambas desprezadas pelo Ocidente como Outros inassimiláveis, estão pesadamente comprometidas na construção de modelos econômicos praticáveis que não estejam conectados, em diversos graus, ao cassino financeiro ocidental e/ou às redes de cadeias de fornecimento. E é isso que está deixando o Excepcionalistão enlouquecido – ainda mais enlouquecido do que já está.