Tem gente tentando, sem sucesso, fazer hoje o debate sobre o filme da turma da Barbie com o mesmo formato e os mesmos instrumentos das discussões dos anos 70 e 80 em torno da turma do Pato Donald.
O livro ‘Para ler o Pato Donald’, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, ofereceu munição, em mesas de bar e borracheiras, para o enfrentamento do que a Disney significava como ameaça a crianças e adultos latino-americanos.
A obra deu corda às tentativas de compreensão do que eram aquelas famílias de bichos sem pai, sem mãe, sem trabalho, sem sexo.
As esquerdas se divertiram. O Pato Donald e sua turma seriam a expressão da dominação capitalista assexuada, com a imposição de valores imperialistas (dinheiro, egoísmo, cobiça, logro) dos americanos.
Dorfman e Mattelart acabaram admitindo mais tarde que produziram um livro datado, num momento terrível para o Chile, onde a obra foi originalmente publicada.
Enquanto o livro virava best-seller, disseminava-se a certeza de que os quadrinhos eram parte da dominação cultural e de costumes. O contexto ajudava.
O tempo passou, a roda girou, as esquerdas avançaram e recuaram, os chilenos elegeram Gabriel Boric achando que fosse de esquerda, as abordagens sobre comunicação de massa mudaram e muita gente se deu conta de que o livro tinha exageros.
O próprio Mattelart admitiu no começo dos anos 2000 que a turma do Pato Donald não causou estragos percebíveis no imaginário das crianças, como eles chegaram a pensar que causaria.
‘Para ler o Pato Donald’ havia sido, segundo Mattelart, “um livro de circunstância, um panfleto”. Hoje, seria apenas um gibi velho.
Tanto que os dois autores, teóricos da indústria da comunicação e do entretenimento, nunca mais fizeram referência ao livro em seus ensaios a partir dos anos 80.
O que aconteceu agora com a Barbie é que parte das esquerdas tentou puxar um debate com as mesmas ferramentas do século 20 sobre o pretenso e inesperado
feminismo da boneca no filme.
Cuidado que a Barbie nunca foi da nossa turma, é o alerta que aparece com frequência nas redes sociais.
O cinema atualizou uma figura branca, loira, magra, que consagrava um padrão de beleza, e trouxe a boneca com suas variações para o mundo do século 21 acossado por machismos e fascismos em suas mais variadas manifestações.
Mas o debate fica na superfície e envolve debatedores cansados, na maioria os mesmos do tempo do Pato Donald de Dorfman e hoje com idades ao redor dos 70 anos.
E os mais jovens? Os jovens não querem saber dessa conversa, porque não têm o ímpeto e as motivações de pais e principalmente de avós de antigamente.
No debate da Kombi da Elis, as esquerdas talvez tenham se dado conta de que, eureka, os mortos nunca foram donos das suas vidinhas de mortos, muito menos de suas obras.
E concluíram que sempre foi assim, com o capitalismo tentando ganhar dinheiro do jeito que dá de quem já morreu ou um dia irá morrer.
E aí veio a Barbie. Sim, a moça do filme assustou a extrema direita moralista, por dar vida a uma boneca que agora vem com uma turma progressista e diferente (o filme tem uma atriz trans que interpreta a Barbie médica). Mas qual é a novidade na reação do bolsonarismo que teme as mulheres? Nenhuma.
A extrema direita teme os danos das ousadias da Barbie para a família brasileira, mas não tem medo dos efeitos de atitudes e declarações de um tarado com atração por crianças de 14 anos.
O que importa mesmo é que o filme assombrou uma boa porção da esquerda. Há desconforto com a boneca humanizada e com um perfil atrevido, exaltando diferenças e metendo o dedo na cara do machismo, dos preconceitos e da família tradicional.
Jogam pedras na moça de cor de rosa por não entender como ela pode ter mudado e começado a falar o que anda falando nos cinemas.
O macho de esquerda está incomodado com uma boneca que vira gente, fica esperta e o confronta com suas contradições não resolvidas há décadas.
É um assombro que pega, claro, também algumas mulheres. Barbie desconcertou uma certa esquerda que já não sabe nem brincar de casinha.