“Ubumpuru Transversal, uma corpa marginal”, que estreou no dia 7 de setembro e percorreu nove cidades, encerrando a temporada em Capão da Canoa, no dia 2 de outubro, é mais que um espetáculo para ser apreciado no teatro. Trata-se de um projeto de pesquisa, criação e circulação cênico-performático-social, que surge como estratégia de sobrevivência da multiartista AJeff Ghenes, a partir da pesquisa, intitulada Ubumpuru Transversal: Em Travessias InTRANSitivas por Encruzilhadas.
Ao assistir AJeff no palco do Teatro de Arena, no dia 30 de setembro, tive a sensação de uma busca daquilo que é possível entre a ordem e a desordem,entre o limite e o infinito, entre o certo e o errado, entre o desejo e a repulsa. O espetáculo se compõe na transitoriedade entre múltiplas linguagens e tudo na cena, dos tecidos que compõem o figurino às luzes que projetam sombras nas paredes, passando pelos sons, ora entoados pela atriz, ora sentidos na expressão e em seus movimentos potentes, e o elemento água, como um princípio catalizador da vida que nasce, pulsa, sente e se recusa a sucumbir.
Das rodas feitas em volta de uma fogueira, da bruma borrifada pelas nuvens, das águas calmas e ritmadas de um rio-mar emerge uma lenda, um mito, um rito. Ubumpuru conecta histórias corporificadas pela simbologia cênica, trazendo ao palco lembranças adormecidas da memória coletiva, pequenas ou
grandes narrativas do que é real e, também, daquilo que é ficção. A lenda Ubumpuru brinca com o nosso imaginário. É a vida que AJeff viveu, é a lembrança das histórias que uma avó contava, é o cheiro que lhe adentra as narinas, o caminho que percorreu e as criações possíveis que a trouxeram até aqui.
No palco (e na vida) um corpo travesti, não-binário, racializado e periférico ressignifica, em uma performance visceral, a vida que pulsa no presente como resistência. Ubumpuru é cheio de referências e de apelos expressivos. Ressignifica no hoje o corpo que antes foi exposto em galeria como desumano. Um corpo que agora se expõe e se impõe para ser e contar a sua história e a de tantas outras. Cada minuto de tempo carrega uma história; cada corpo é habitado por aquilo que lhe confere, pelo movimento e a presença, os diferentes possíveis em um mundo que insiste nas diferentes (in)possibilidades.
Na cena, AJeff Ghenes se entrega e busca em suas memórias afetivas as transformações que a fazem viver, no palco, emoções, sentimentos, entregas, perdas, descobertas, transformações. O vogue e a dança afro invocam os elementos identitários, assim como as referências às religiões, às lendas, aos contos, às histórias. São muitos os elementos para se pensar o que é um corpo no mundo, quais os diferentes lugares que ele habita e, talvez o mais importante, quais são os lugares nos quais ele é autorizado a habitar, a transitar e a existir.
Ubumpuru, ao se propor um lugar de transformação, nos coloca a pensar. Assistir à performance de AJeff é inquietante, provocador, longe de ser passível de um “amei” imediato. Diria estar mais próximo de um: “O que eu penso disso tudo? Como eu me vejo nessa cena?” Não saberia dizer o que penso disso tudo, dessa tomada de consciência de um corpo que é dissidência e arte – como Marina Abramovich já nos mostrou tão intensamente em seus diferentes trabalhos. Um corpo que nos apresenta a impossibilidade de controlar a existência. O mais sensato a pensar: se existe, merece existir; se há pulsão, merece emergir, nascer, criar.
A existência desse corpo travesti, não binário, periférico e racializado trouxe para o palco, que poderia ser uma metáfora das nossas mentes inquietas e moldadas em regras e binarismos de toda ordem, o estranhamento necessário para se pensar sobre o que a sociedade autoriza e valida como existência legítima. A criação da lenda Ubumpuru foi a forma encontrada por AJeff para dar significado à sua existência. Essa conexão entre a vida vivida e sua transformação em arte torna essa lenda e o espetáculo um tanto especial. As navalhas que carregam o fio da vida, ela quebrou quando criança. Ubumpuru vê o aquário, sente o fio d’água escorrer, mira a água e se atira nela, como quem se lança à vida.
A reflexão trazida ao palco é também uma forma de subversão, uma vez que se trata de um espetáculo e de parte da pesquisa de mestrado da diretora Izabel Cristina. Em parceria com o também diretor Daniel Colin, Ubumpuru não é para ser visto uma única vez. O espetáculo foi contemplado no Edital FAC das Artes e Espetáculos da Secretaria de Estado da Cultura do RS e recebeu financiamento do Fundo de Apoio à Cultura do RS. Em seu aspecto acadêmico, teve o apoio do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, onde Izabel Cristina desenvolve sua pesquisa orientada pela professora doutora Patrícia Fagundes.
Para a AJeff Ghenes, “uma corpa não está só no palco, ela está inundada de muitas, de outras, de nós. O ritual que materializa a lenda Ubumpuru é ancestral e se infiltra nas estruturas, nos permite brincar com as palavras: um Cis tema atual que emerge em busca de um futuro Trans formador”. A oralidade, aliada à dança, às cores e aos movimentos reconta um feitiço, um pedido, uma canção que ecoa no outro, produzindo afetos diversos. Há, em Ubumpuru, a busca constante de todos nós por uma estratégia de
sobrevivência.