Acerta o governo Lula ao propor uma regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo. Precisa avançar também para apps de entrega. Hoje estamos diante de uma prima remediada da escravidão: a escravidão digital. Fato é que não são mais funções de complemento de renda e sim profissões, principalmente depois da pandemia.
É bom o projeto de lei, cujo envio ao Congresso Nacional foi anunciado nesta segunda-feira? Confesso que ainda não consigo avaliar. Mas é resultado de grupo de trabalho, criado em maio de 2023, com a participação de representantes do governo federal, trabalhadores e empresas, e que foi acompanhado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Vamos às informações compiladas pela Agência Brasil sobre a proposta que, aprovada pelos deputados e senadores, valeria após 90 dias.
No projeto, o governo propõe o valor que deve ser pago por hora trabalhada e contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Eles terão direito a receber R$ 32,90 por hora de trabalho. Desta forma, a renda mínima será de R$ 1.412, o piso nacional.
O grupo de trabalho discutiu se os motoristas de aplicativo deveriam ser enquadrados nas regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A maioria da categoria optou pela autonomia com garantia de direitos.
Cria-se uma organização diferenciada: autônomo com direito. Motoristas poderão ficar vinculados a tantas plataformas quiserem, organizarem seus horários, mas terão cobertura de direitos.
Os motoristas e as empresas vão contribuir para o INSS. Os trabalhadores pagarão 7,5% sobre a remuneração. O percentual a ser recolhido pelos empregadores será de 20%.
Mulheres motoristas de aplicativo terão direito a auxílio-maternidade.
A jornada de trabalho será de 8 horas diárias, podendo chegar ao máximo de 12.
Não haverá acordo de exclusividade. O motorista poderá trabalhar para quantas plataformas desejar.
Para cada hora trabalhada, o profissional vai receber R$ 24,07/hora para pagamento de custos com celular, combustível, manutenção do veículo, seguro, impostos e outras despesas. Esse valor não irá compor a remuneração, tem caráter indenizatório.
A exclusão de motoristas só poderá ser feita pela empresa em “hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma”, desde que assegure o direito de defesa ao motorista.
Os motoristas serão representados por sindicato nas negociações coletivas, assinatura de acordos e convenção coletiva, em demandas judiciais e extrajudiciais.
Sigo eu.
Para se ter uma ideia do tamanho dessa nova categoria, 1,5 milhão de famílias no país dependem da renda gerada por transporte de passageiros por aplicativo. Mais que uma Porto Alegre inteira. Em Gravataí e Cachoeirinha seriam pelo menos 3 mil famílias.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2022, 70,1% dos ocupados em aplicativos eram informais.
Inegável é que o mundo de liberdade ‘empreendedora’, vendido pela nova tecnologia da chamada ‘economia compartilhada’, estacionou no deslumbramento.
A liberalidade de horários e horas trabalhadas se choca com uma realidade onde o patrão não entra nem com os meios de produção – no caso, o veículo; e esse foi um dos pedidos de associações de motoristas de app ao governo: que oferte linhas de crédito para compra de automóveis.
Bateu o carro, adoeceu, já era. Aposentadoria? Ainda mais após reforma, deixa para um eterno amanhã.
É de 12h o limite de horas definido pela Uber, podendo o motorista voltar a operar apenas 6h depois, mas para complementar renda muitos ultrapassam esse tempo ao volante buscando corridas por outros aplicativos.
É, ou não é uma escravidão digital?
A própria Uber, talvez por estratégia para evitar confrontos e influenciar em alterações durante a análise pelo Congresso, já admite regulamentação.
Em nota, a empresa informou considerar o projeto apresentado pelo governo “um importante marco visando a regulamentação equilibrada do trabalho intermediado por plataformas”, porque “amplia as proteções desta nova forma de trabalho sem prejuízo da flexibilidade e autonomia inerentes à utilização de aplicativos para geração de renda”.
“A empresa valoriza o processo de diálogo e negociação entre representantes dos trabalhadores, do setor privado e do governo, culminando na elaboração dessa proposta, a qual inclui consensos como a classificação jurídica da atividade, o modelo de inclusão e contribuição à Previdência, um padrão de ganhos mínimos e regras de transparência, entre outros”, diz a nota, concluindo que “a empresa irá acompanhar a tramitação do projeto no Congresso Nacional”.
Salvo melhor juízo, percebe a Uber o risco de condenações pela falta de regulamentação.
Decisões de tribunais em diferentes estados já confirmaram que o vínculo entre motoristas e a empresa se encaixa, na legislação brasileira, como trabalho intermitente, a partir da reforma trabalhista.
O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece que o trabalho por demanda – válido para qualquer tipo de atividade do empregado ou do empregador, exceto aeronauta – pode se configurar como relação de emprego intermitente.
Não por nada, para impedir uma jurisprudência que reconheça o vínculo empregatício, a Uber tem oferecido acordos a motoristas que estão prestes a ganhar ações judiciais.
Ao fim, reputo um debate inadiável.
Lula mostra coragem, já que na polarização de um só extremismo que vive o país, resta desde ontem em fake news como ‘contra o Uber’ e o maravilhoso mundo da escravidão digital.
Lembro declaração de Wagner Oliveira, que se apresenta como primeiro motorista expulso ao acionar a multinacional no Brasil por solicitação de vínculo de emprego, autor do livro “Minha batalha contra a Uber”.
– A Uber nada mais é do que uma organização criminosa planetária, que pratica crime por algoritmos. O algoritmo substitui o gerente da empresa, que fica no pé do funcionário, e substitui o capataz da fazenda, que dava chicotadas nos escravos. E ele não dorme. É uma máquina, uma função do computador, e faz uma vigilância implacável do motorista 24 horas por dia.
“Ah, mas vou pagar mais pela corrida!”. Se sua preocupação é exclusivamente essa, vergonha de você. Dos chicoteados que muitas vezes ajudam a segurar o chicote sinto pena.