Há 10 dias, critiquei o movimento por um adiamento das eleições, ou mesmo uma prorrogação de mandatos, devido à catástrofe das inundações.
Se políticos como o governador Eduardo Leite (PSDB) – e, salvo melhor juízo, também a linha editorial da RBS – defendem o adiamento, ontem o jornalista Reinaldo Azevedo se associou a minha tese, no UOL.
Sigamos no texto Perdido, Leite fala absurdos e tenta pateticamente minimizar apoio federal.
O que sobra de má vontade de alguns setores da imprensa com o governo Lula — que vaia até aplauso a documentário sobre o presidente — sobra de boa-vontade com Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, embora este diga coisas do arco da velha. Mas o faz, já demonstrei, sempre escandindo sílabas, com vagar, o que parece emprestar ao pensamento certa profundidade.
A sua tese sobre o adiamento das eleições no Estado é do balacobaco. Não se referiu a eventuais dificuldades técnicas ou à falta de segurança nas urnas. Não. Ele preferiu, vamos dizer, o “Argumento Zelensky”: não é hora para o poder mudar de mãos. Nas aspas publicadas pelo Globo:
“Ainda é um pouco cedo, mas também não vai poder retardar muito essa discussão. Junho já é um momento pré-eleitoral e em julho se estabelecem as convenções. É um debate pertinente. O Estado estará em reconstrução, ainda em momentos incipientes, em que trocas de governos municipais podem atrapalhar esse processo. O próprio debate eleitoral pode acabar dificultando a recuperação”.
A propósito: o ucraniano está sempre de uniforme militar; Leite, sempre com o colete da Defesa Civil.
O tribunal descartou de pronto o adiamento. Insisto na ruindade do argumento: em momento de reconstrução, nada de eleição? Entendi. Ele não quer dar à população de Porto Alegre, por exemplo, a chance de ao menos avaliar o trabalho do prefeito Sebastião Melo (MDB). Parece que temos uma nova tese: democracia não combina com enchente; só serve com sol e céu azul.
É uma aberração. Se não se puder garantir a segurança do pleito, é evidente que se há de pensar o caminho jurídico para o adiamento, mas isso ainda não está dado. Abrir esse precedente significa piscar para outras situações de exceção em que se pediria licença para descumprir a Constituição.
A biruta de Leite está torta. Sua resposta sobre a existência de uma autoridade federal e sobre a mobilização brutal de recursos da União indica que é ele a politizar a tragédia, não seus adversários. Reparem:
“Por uma decisão que a sociedade tomou, pelo voto popular. Então, o que o ministério que o presidente Lula criou tem no nome, e entendo deva ser o que orienta a sua ação: é uma secretaria extraordinária para apoio à reconstrução. Todo apoio é bem-vindo. O apoio do setor privado, o apoio dos voluntários, o apoio das doações, o apoio da sociedade civil de diversas formas, o apoio do governo federal é bastante importante nesse processo.
O meu papel como governador não é o de fazer análises políticas, é de resolver o problema. Para resolver o problema, precisamos juntar as forças de todos, inclusive a do governo federal. O presidente apresentou o seu preposto para esta missão de apoiar a reconstrução, vamos trabalhar com ele, vamos juntar as forças para poder atender a população”.
Parece piada, mas o “inclusive” da sua resposta, que é o governo federal, responde por mais de 80% da mobilização de recursos e dos desembolsos futuros já contratados. Lula nunca disse que iria intervir no Estado. Mas, se a fala do governador estivesse certa e se sua gramática espelhasse os fatos, a ajuda federal seria apenas mais uma entre muitas, de sorte que tanto faria, no que respeita a perdas, os voluntários voltarem para a casa ou o Planalto pôr fim a seus programas. Uma resposta que traz tal implicação está estupidamente errada e atende apenas a um viés político.
Afirmar que o presidente apresentou o seu “preposto” é coisa de gente malcriada. Leite tem a legitimidade que lhe confere o povo gaúcho para responder aos desafios dados. Lula tem a legitimidade que lhe confere o povo brasileiro para mobilizar a montanha de bilhões para reconstruir o Estado.
O governador não se sai melhor quando trata das questões ambientais. Então não havia os estudos? Ele manda brasa:
“Bom, você tem esses estudos, eles de alguma forma alertam, mas o governo também vive outras pautas e agendas. A gente entra aqui no governo e o estado estava sem conseguir pagar salário, sem conseguir pagar hospitais, sem conseguir pagar os municípios.
A agenda que se impunha ao estado era aquela, especialmente aquela vinculada ao restabelecimento da capacidade fiscal do estado para poder trabalhar nas pautas básicas de prestação de serviços à sociedade gaúcha.
O governador não se sai melhor quando trata das questões ambientais. Então não havia os estudos? Ele manda brasa:
“Bom, você tem esses estudos, eles de alguma forma alertam, mas o governo também vive outras pautas e agendas. A gente entra aqui no governo e o estado estava sem conseguir pagar salário, sem conseguir pagar hospitais, sem conseguir pagar os municípios.
A agenda que se impunha ao estado era aquela, especialmente aquela vinculada ao restabelecimento da capacidade fiscal do estado para poder trabalhar nas pautas básicas de prestação de serviços à sociedade gaúcha.
Cumprimos essa tarefa, porque agora estamos diante dessa crise enorme com capacidade fiscal para enfrentá-la.
É uma resposta absurda. Qualquer um que oponha a questão fiscal à questão ambiental ou que coloque essas duas realidades numa relação de contradição está fazendo má política. E notem que foi ele a tratar os temas como polares, não seus adversários. Referiu-se assim aos alertas:
“Já recebi alertas que não se revelaram. Agora mesmo na crise, fizemos alerta numa determinada quarta-feira que teriam vendavais e temporais e não se confirmou. Então, eventualmente, os alertas também não se confirmam. A gente está buscando fazer a adaptação e essa situação crítica que a gente está enfrentando agora (…)”
Outra diatribe própria de quem, com efeito, não se ocupou da agenda ambiental — a não ser para desmontá-la. Levada sua resposta a sério, o doutor nos convida a levar a considerar alertas da ciência a depender da conveniência, já que essa gente acerta e erra. Então fica ao gosto do freguês.
O padrão do político Leite é de tal sorte conservador, tendente ao reacionário, que ele insiste em associar ao Plano Marshall a ajuda fabulosa do governo federal, o que é uma bobagem que quase dispensa comentário. O que dinheiro público do próprio país empregado na ajuda a uma das unidades da federação tem a ver com a ação dos EUA para recuperar a Europa pós-guerra, com o socialismo também vitorioso, então, batendo à porta? NADA! Se Leite quer encontrar algum paralelo na história americana, então tem de falar do “New Deal”, de Franklin Roosevelt, não é mesmo? — ainda que a dimensão fosse muito maior. Ocorre que conservadores e reacionários aprendem a odiar o “New Deal” e Roosevelt desde as fraldas do pensamento. Vai que sejam confundidos com defensores do Estado…
Quando o governador afirmou que as doações criavam impedimentos para o comércio local, observei que não cometia um deslize ou uma atrapalhação. Aquilo era um pensamento. Que se desdobra, como se vê, em outras impropriedades. O ideal para ele e para alguns críticos de Lula seria o governo federal a funcionar como uma cornucópia, um poço sem fundo, sob o comando de um político que confessa não ter sabido conciliar demandas ambientais com a questão fiscal.
Era fatal, convenham, que acabasse pedindo o adiamento das eleições.