Quando os seres humanos hesitam em matar ou torturar, a IA assume seu lugar. Como Tel Aviv pinça, nas redes sociais, suas vítimas. Por que, agora, as guerras nunca serão as mesmas. Como esta deriva está desintegrando o Estado sionista. Compartilhamos o artigo de Bifo Berardi, em Il disertore, traduzido por Antonio Martins para o Outras Palavras
As guerras do século XXI são cada vez menos combatidas por seres humanos. Os seres humanos são as vítimas, mas quem executa o extermínio são máquinas. Máquinas que, por sua vez, são cada vez menos controladas por seres humanos, pois a tendência implícita nos sistemas de inteligência artificial, dotados de capacidades de autoaprendizagem e de deep learning, é liberar esses organismos, aleatórios e muitas vezes dotados de consciência e sensibilidade, da tarefa de torturar, mutilar, matar e exterminar, e deixar essa função nas mãos de sistemas dotados de inteligência.
A palavra “inteligência” denota a capacidade de realizar uma tarefa, independentemente de sua utilidade social, licitude ética, etc., e, acima de tudo, independentemente das emoções. Inteligência sem sensibilidade, inteligência sem consciência: a máquina inteligente exterminadora é o produto geral do sistema capitalista na era da automação inteligente. O nazismo do século XX teve que considerar os limites da inteligência emocional, como mostra Jonathan Little em seu terrível romance Les bienveillantes (2006; As Benevolentes, 2019). O tecno-nazismo do século XXI, do qual os sionistas são o símbolo e a vanguarda, emancipa-se desses limites.
O trabalho de matar é exaustivo, como aprendemos ao ler este romance sobre a fadiga psíquica de um membro da SS: o organismo humano tem limites físicos e psicológicos dos quais a máquina inteligente se emancipa. Segundo reportagens do Haaretz e da CNN, a fadiga psíquica do extermínio está desgastando os nervos dos exterminadores israelenses: suicídio, transtornos psíquicos pós-traumáticos e autodesprezo afetam os soldados do exército Israel (as “FDI”). Minha previsão é que esses transtornos são apenas o início de um colapso psíquico generalizado da sociedade israelense, que não poderá sobreviver muito tempo após o Holocausto palestino. O genocídio está provocando um processo de desintegração mental do Estado sionista. Netanyahu, Ben Gvir e Smotrich armaram Israel contra si mesmo.
O drone é a figura dominante nesta nova fase do nazismo: a guerra na Ucrânia e o genocídio em Gaza são o palco de experimentação dessa nova fase de extermínio, processo que se desenvolverá plenamente no século XXI. O drone é uma aeronave caracterizada pela ausência de um piloto humano a bordo. Seu voo é controlado por computadores que podem ver, ouvir e executar o extermínio. Dos primeiros modelos de grande porte, que apenas alguns exércitos possuíam, a tecnologia evoluiu para a construção de modelos muito pequenos, operados em grupo (enxame de drones ), acessíveis a qualquer um devido ao seu baixo custo.
O genocídio israelense constitui a primeira aplicação em grande escala dessa automação do extermínio. Não devemos pensar que se trata de um episódio isolado, nem que, após este acontecimento excepcional, a guerra retornará aos seus antigos traços desumanamente humanos. A desumanidade finalmente se emancipou do humano e pode, enfim, proceder automaticamente. Na competição tecnomilitar, as máquinas de extermínio estão destinadas a se generalizar. A partir de agora, todos os conflitos armados, sejam guerras nacionais, religiosas ou civis, recorrerão cada vez mais às técnicas do extermínio inteligente.
A revista israelense 972 publicou em abril de 2024 o relatório mais aterrorizante de que tenho lembrança: descreve a estrutura epistêmica e pragmática de um sistema de inteligência artificial projetado para detectar e atacar alvos hipoteticamente hostis. Esses alvos podem ser transeuntes inocentes, crianças voltando da escola, mulheres indo buscar água na fonte. Não importa. O extermínio automático funciona de forma estocástica e a estocasticidade militar não pode ser excessivamente sutil. O sistema de extermínio israelense, que leva o pomposo nome de Lavender, é, como informa o 972:
Uma máquina especial que pode processar enormes quantidades dados, com o objetivo de gerar alvos potenciais para realizar ataques militares durante uma guerra. Essa tecnologia resolve o que pode ser descrito como o gargalo verificado tanto na identificação de novos alvos quanto na decisão de executá-los.
Os seres humanos constituem, portanto, um gargalo, um elemento de incerteza e de lentidão. Por mais impiedosos e fanáticos que sejam, continuam sendo máquinas indeterministas: a emocionalidade, a incerteza e a fadiga podem limitar sua competência para matar. É necessário que a máquina inteligente absorva progressivamente toda a sequência de ações que tornam possível o extermínio: detecção visual e auditiva, catalogação, seleção, eliminação. E, finalmente, autocorreção e aperfeiçoamento em busca do objetivo superior: instaurar a ordem onde os seres humanos representam o caos, eliminando, consequentemente, todo elemento humano.
O Lavender desempenhou um papel essencial no bombardeio da população palestina […] sua influência nas operações do exército israelense foi tão grande que os militares trataram as informações da máquina dirigida por inteligência artificial como se fossem decisões humanas […]. O sistema inicialmente identificou 37.000 palestinos como supostos militantes e considerou suas residências como alvos de bombardeios aéreos […]. O exército israelense atacou sistematicamente os indivíduos selecionados pelo Lavender em suas casas, especialmente à noite, quando famílias inteiras estavam com eles […]. Segundo duas fontes que entrevistamos, o exército decidiu que, para cada membro do Hamas indicado por Lavender, seria permitido matar até quinze ou vinte civis […] se o alvo fosse um oficial do Hamas, seria permitido eliminar até cem civis […].
A solução para o problema, acrescenta o oficial, é a inteligência artificial. Temos um guia para construir uma máquina de criação de alvos, baseada em algoritmos de aprendizado de máquina. Neste guia, há muitos exemplos de características que permitem identificar uma pessoa como perigosa, como estar em um determinado grupo de WhatsApp, trocar de celular com frequência ou mudar frequentemente de endereço […].
Na guerra, não há tempo para discriminar cada um dos alvos, então temos que aceitar uma certa margem de erro no uso da inteligência artificial; precisamos correr o risco de provocar danos civis colaterais ou de atacar alguém por engano e temos que aprender a viver após informados sobre isso. (live with it).
Este oficial, cujas declarações são registradas pelo 972, conclui dizendo que, após matar centenas – na verdade, milhares; na verdade, dezenas de milhares – de crianças, mulheres e inocentes, é preciso aprender a “live with it“. Viver com a consciência de ser um exterminador. Uma expressão assustadora que, por si só, nos diz até que ponto chegou a degradação ética e quão profundo é o abismo de cinismo assassino no qual se afundou toda a população de Israel.
“B” (uma fonte do 972) nos disse que era normal que essa automatização gerasse um número maior de alvos a serem atingidos. Se em um dia não houvesse muitos alvos, devido a critérios de definição insuficientes, tínhamos que reduzir o limite de definição. Uma vez após a outra, os soldados nos pressionavam dizendo: “Dê-nos mais alvos”. Na verdade, eles nos diziam isso aos gritos. “Já terminamos com todos os alvos que vocês nos deram ontem […]”. Lavender e sistemas similares, como o chamado Where’s Daddy, combinam-se para obter o efeito de matar famílias inteiras.
Os órgãos oficiais do exército israelense comentam com satisfação esses resultados da máquina de guerra inteligente:
O Estado de Israel é um ator de alta competência tecnológica e utiliza isso como parte de seu leque de ferramentas diplomáticas para se tornar líder no projeto do sistema internacional de governança tecnológica. A necessidade de supremacia tecnológica para Israel deriva das ameaças que enfrenta […].
A eliminação seletiva e a multiplicação de assassinatos colaterais são o resultado de um aperfeiçoamento técnico do qual Israel é vanguarda, mas não devemos pensar que se trata de um fenômeno isolado e pontual. Todo o Ocidente deve se equipar com uma governança tecnológica guiada pela inteligência artificial exterminadora.
Inteligência e consciência
Gaza nos revelou a última verdade da história humana: não há saída para a repetição sem fim do ciclo violência-vingança-violência. Então, por que duvidar? É necessário esterilizar a inteligência, é necessário dissociar a inteligência da natureza indeterminista do inconsciente, da emocionalidade. Somente assim podemos entender a inteligência artificial no contexto de uma competição econômica e militar generalizada. A guerra é a continuação lógica da economia liberal, e a guerra requer o uso ilimitado da inteligência. Mas, para poder eliminar os limites da inteligência, precisamos entender o que Yuval Harari destaca em seu livro Homo Deus (2016): a dissociação da inteligência da consciência é a condição para proceder a um uso ilimitado da primeira. A consciência, se é que essa palavra significa algo, é uma limitação da inteligência. Refiro-me à consciência ética, que significa uma consciência sensível, incorporada. O trabalho de matar, que é o trabalho mais importante da atualidade, o investimento mais importante da economia terminal, torna-se tanto mais produtivo quanto mais a inteligência (homicida) se emancipa da consciência (ética).
Desde que o sionismo transformou a população israelense no coração das trevas do supremacismo contemporâneo, Israel se tornou a Endlösung-Machine [máquina da solução final]. Por isso, sabemos que nunca haverá um pós-guerra. Ninguém mais pode acreditar que haverá paz em algum momento no futuro, pois o extermínio foi incorporado a uma máquina que se autocorrige, se aperfeiçoa, se conecta e se expande, uma máquina que ninguém tem a capacidade de desativar. A emergência da inteligência artificial revela-se como a consequência da obsolescência humana e simultaneamente como a condição para a subjugação técnica definitiva dos seres humanos. Esta é a verdade essencial que precisamos apreener sobre a inteligência artificial na era da guerra total assintótica. Todo o resto é pura conversa fiada, concebida para fazer perder tempo.
Aviv Kochavi, chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel, declarou que a metodologia bélica israelense se inspira na teoria rizomática de Deleuze e Guattari. A proliferação assimétrica da guerra de micromáquinas é a melhor definição da ideia de transformar objetos cotidianos, como pagers e walkie-talkies, em armas de destruição em massa. Somente leitores ingênuos poderiam acreditar que a metodologia rizomática de Deleuze e Guattari é uma teoria de libertação. Na verdade, trata-se de algo muito mais complexo e articulado: essa metodologia primeiro conceitualiza o modelo econômico baseado na distribuição molecular do controle capitalista. Depois, vem a inscrição molecular da guerra e do terror em cada fragmento da vida cotidiana e das coisas de uso comum. A vida paranoica de Israel, um país permanentemente obcecado pelo ódio das populações ao seu redor e que sempre o será (durante os poucos anos que lhe serão concedidos sobreviver, antes de se autodestruir), é marcada por essa molecularização do terror.
A guerra de extermínio é, se me permitem o macabro trocadilho, o killer application da inteligência artificial. A inteligência artificial pode ter nascido com intenções puramente científicas, ou puramente econômicas, ou até com ingênuas intenções humanitárias. Mas seu uso perfeito, específico e final é o extermínio. Nos últimos anos, ouvimos falar de regulamentação ética da inteligência artificial, ouvimos falar de alinhar a tecnologia com os “valores” humanos. São insubstancialidades desprovidas de qualquer sentido. Em primeiro lugar, o que significam os valores humanos? De que universalidade estamos falando? Da universalidade do lucro, da concorrência econômica, do crescimento ilimitado? Ou da universalidade de outra coisa? Quem é o senhor da universalidade no momento em que toda a humanidade está culturalmente em guerra?
A ideia de alinhar a inteligência artificial com os valores humanos é exatamente o oposto do que tem acontecido e está acontecendo no mundo da pesquisa e aplicação desta tecnologia: nossas faculdades cognitivas se alinharam ao formato digital do mundo, o que vem ocorrendo nos últimos cinquenta anos, um processo que agora chegou à etapa final: alinhar a inteligência artificial com o imperativo do extermínio, que domina o inconsciente e a ferocidade da seleção natural. Em seu todo, os discursos sobre a ética da inteligência artificial são imbecilidades, pois se baseiam na eliminação e no esquecimento do uso militar da mesma, que domina a pesquisa, o financiamento e o uso desta tecnologia: inteligência movida pela demência, pela psicose, pelo horror.